Raul Zagalo
Insurrecto de Beja, 1962
Lema de uma vida: «Não há salvação, se não for com todos»
Em dezembro de 1961, durante uma reunião de preparação da revolta de Beja, o Manuel Serra, comunicou-nos que tínhamos adesões militares. Sabíamos que não tinham sido bem-sucedidos contactos feitos no Norte do país e perguntei, então, se teríamos a adesão do capitão Varela Gomes, mas o Manuel sorriu e, obviamente, não confirmou. Para além do General Delgado, no exílio, autor do vago plano para o qual tinha mandatado Manuel Serra, Varela Gomes era, para mim e outros companheiros, o único militar conhecido que nos parecia capaz desse passo. Todos nós tínhamos admirado aquele “insólito” candidato da oposição, oficial dos quadros do Exército, na farsa eleitoral das eleições legislativas, em novembro desse ano. Tínhamos acompanhado- na medida do possível – as suas desassombradas intervenções de denúncia do regime e da guerra colonial. A desconfiança que nós, civis, tínhamos, relativamente aos militares, e vice-versa, não se dissipou, mas entreabriu-se uma janela de esperança.
O malogro da Revolta de Beja selou-se com a morte de companheiros e o sangue de Varela Gomes que, apesar de ter chamado a atenção do Manuel Serra para não estarem reunidas condições mínimas de êxito, foi incapaz de deixar os civis sozinhos e avançou determinado, como sempre, conseguindo unicamente a adesão de seis camaradas militares, cinco dos quais o acompanharam. Depois de baleado, foi levado por dois camaradas para o hospital de Beja, onde a PIDE de Salazar pretendia que morresse, sendo salvo por cirurgias feitas por uma equipa de cirurgiões, idos de Lisboa, na madrugada do dia 2, para a eventualidade de socorrer vítimas do regime, mas que impuseram à PIDE de Salazar intervencionar Varela Gomes. Passadas poucas horas, toda a cidade e o país tomaram conhecimento da participação de Varela Gomes na revolta e do seu estado. Para todos os jornais do dia 2 e para as autoridades repressivas, que ouvíamos no hospital de Beja, o capitão Varela Gomes “chefiava o grupo dos revoltosos”.
Salazar ordena que Varela Gomes e os seus camaradas militares sejam imediatamente demitidos do Exército e entregues à PIDE, tal como os civis. A legislação em vigor determinava que os Tribunais Militares assumissem o processo. Após algumas sessões perante um juiz instrutor, no Tribunal Militar de Santa Clara, Salazar disse que “tinha de acabar com aquela feira” e determinou que o processo fosse remetido para o Tribunal Plenário.
E foi no Tribunal Plenário da Boa Hora, em janeiro de 1964, que pudemos estar, finalmente, com Varela Gomes e os seus camaradas militares. Em Julho desse ano, após enfrentar o tribunal durante seis meses, denunciando com veemência os atrasos e as repressões de matriz totalitária do Estado Novo, Varela Gomes pronunciou o célebre apelo: “Que outros triunfem onde nós fomos vencidos.”
Logo a partir das primeiras sessões do julgamento, Varela Gomes emergiu como um líder reconhecido por todos nós, a par do Manuel Serra. A Revolta de Beja nunca teria tido a repercussão que teve, nomeadamente nos principais órgãos da imprensa internacional, sem a sua participação.
No início de 1968, após a sua libertação do cárcere de Peniche, iniciámos uma amizade que se prolongou por cinquenta anos até ao seu falecimento em 2018, e que enriqueceu a minha vida. E foi como amigo chegado que observei os combates permanentes de um Revolucionário Indefetível, hoje do conhecimento de todos.
Varela Gomes procurou estar sempre na linha da frente, indiferente aos riscos, dando o corpo às balas pela revolução, sempre a pensar nos outros, numa pátria socialista e sempre, sempre, como Homem Livre. Lembro que dizias que “não há salvação se não for com todos.”
Que falta fazes, aqui, Varela Gomes! Que falta me fazes, amigo João!