António Rosado da Luz
Militar de Abril
O “meu” Varela Gomes
A minha “relação” com o Coronel Varela Gomes começa muitos anos antes de o conhecer e ele é um dos personagens centrais da “pré-história” da minha formação e consciencialização política.
Essa minha “pré-história” começa com o Merdock aos meus 7 anos e acaba com o Varela Gomes aos 15.
Em 21 de Fevereiro de 1954, andava ainda na 2ª classe da Escola da Sé, a minha Escola Primária da cidade de Faro, onde nasci, quando participei, pela primeira vez na vida, num movimento contestatário de massas pela “liberdade”: tratou-se de uma luta pública e, portanto, “política”, pela liberdade… de um cão, o Merdock.
Embora divertido, inusitado e desconhecido fora do perímetro social da cidade, foi um verdadeiro acontecimento histórico e político, que envolveu e até “marcou”, muitas centenas de jovens estudantes do Liceu, da Escola Comercial e Industrial e até das Escolas Primárias da cidade. O Merdock, um cão rafeiro, vadio, vesgo e sem licença, que era a mascote dos alunos do Liceu e acompanhava alguns dos mais velhos em caçadas noturnas aos gatos, tinha sido levado pela “carroça dos cães” da Câmara Municipal e o seu destino inevitável era, na altura, o abate.
É então que alguns alunos do Liceu promovem, com enorme sucesso, uma mobilização maciça de jovens e miúdos, junto de todas as escolas da cidade e, nesse 21 de Fevereiro, a cidade assiste estupefacta e pela primeira vez, a uma enorme manifestação de centenas de jovens com cartazes e bandeiras, descendo a Avenida aos gritos de “Queremos o Merdock!”, “Viva o Merdock!”, “Liberdade para o Merdock!”, rumo à Câmara Municipal. Numa altura em que eram proibidas manifestações ou até “ajuntamentos de mais de duas pessoas” sem autorização do Governo Civil, a cidade parou para ver tão inusitado ato público de desobediência.
A quase totalidade das pessoas desconhecia quem era o Merdock e havia até quem comentasse que se tratava de um General “de Leste”. Como muitos dos jovens manifestantes eram filhos da classe alta da cidade, o mal-estar foi enorme, a polícia juntou-se aos magotes, mas não houve repressão violenta e tudo acabou com a “libertação” do Merdock e a atribuição de uma “licença” perpétua ao canídeo que continuou a ser a mascote do Liceu durante muitos anos. Em 2004, cinquenta anos depois, com mais de 100 dos então manifestantes, participei no antigo Liceu Nacional de Faro, num almoço comemorativo dessa “data histórica” e no descerramento de uma lápide alusiva a ela.
Na altura isto foi sobretudo diversão, mas ficou, na consciência de muitos de nós, aquela pequena, mas essencial, “semente”: de subversão, de contestação, de revolta e de consciência da força que representam as massas em movimento.
A consciência é um campo fértil, sempre pronto a ser lavrado e, tive a sorte de, ao longo do meu “processo” pessoal de consciencialização, ter tido bons lavradores. Cinco anos depois do Merdock, em 1959, aparece pela 1ª vez, nesse processo, outra figura central, o Zeca Afonso, que tinha sido colocado como professor da Escola Comercial e Industrial. O Liceu Nacional de Faro tinha uma tradição, até no traje académico, muito copiada de Coimbra e o Zeca era já um ídolo dos estudantes pelas suas canções que começaram a ser conhecidas desde 1953 e que todos os estudantes conheciam. Só que é nos anos 59/60 que a agitação política estudantil começa nas universidades de Lisboa e Coimbra, mas se vai estender rapidamente aos Liceus. E foi aí e em Faro, que para nós, estudantes, o “nosso” Zeca «cantor», que ia connosco fazer baladas na escadaria da Sé de Faro, se foi transformando, no “nosso” Zeca «político» e para todos nós foi fundamental o seu acompanhamento, cumplicidade e apoio, nas celebrações, cada vez mais politizadas dos “dias do Estudante” (que se foram estendendo das universidades de Lisboa e Coimbra para os Liceus), que culminaram no célebre Dia do Estudante de 1962.
Entretanto, neste meu processo histórico de consciencialização política, o ano de 1961 é absolutamente central. Em 22 de Janeiro desse ano tenho 14 anos e ando no 5º ano do Liceu e tal como todo o país, “assisto”, conscientemente e pela 1ª vez na minha vida, ao primeiro grande “sobressalto político público” do regime. Um grupo de exilados políticos portugueses e espanhóis comandados por Henrique Galvão e Jorge de Soutomayor haviam desencadeado a “Operação Dulcineia”, assaltando o paquete Santa Maria. O “sobressalto público” foi enorme, envolve todo o país e, embora jovens e imaturos, a “política” torna-se num tema central, em torno do qual passa a girar a maioria das nossas conversas e reflexões, … mas sempre com os olhos atentos a quem nos rodeava e ouvia. Ao longo desse ano, a partir do “Santa Maria”, tudo se vai precipitando e acontecendo em catadupa.
Em Março, novo e enorme sobressalto público: os massacres e o início da Guerra Colonial. E a cidade em peso assiste ao desfile e embarque por comboio do primeiro contingente militar que o Regimento de Infantaria 4, mobiliza para a guerra. E os sobressaltos públicos, que a censura não consegue esconder, são cada vez maiores. Em Abril, a tentativa falhada de Golpe de Estado do Botelho Moniz, Almeida Fernandes e Costa Gomes. Em 10 de Novembro, já no 6º ano do Liceu, estou a sair das aulas da tarde e a cidade, sobretudo a zona do Liceu, é sobrevoada a baixíssima altitude, por um Lockheed Constellation da TAP, com as portas abertas por onde surgiam indivíduos que lançavam milhares de panfletos sobre a cidade. Todos apanhámos e lemos esses panfletos e, minutos depois, todos nos divertimos, com a chegada de dezenas de PIDES, polícias, legionários, guardas republicanos e guardas fiscais que, de rabo para o ar, iam apanhando esses panfletos e corriam atrás de nós para nos tirar aqueles que tínhamos apanhado. Em 18 de Dezembro, a União Indiana ataca e conquista Goa, Damão e Diu e, é o desabar dramático do edifício ideológico que a Escola e o Liceu tinha construído dentro de cada um de nós: aquela noção endeusada do Portugal Imperial, do Portugal Uno e Indivisível do Minho a Timor. Só que as coisas não ficam por aqui e o ano de 1961 vai terminar em apoteose.
É em 1 de Janeiro de 1962 que aparece o último dos heróis desta pré-história da minha consciencialização política. Tenho 15 anos, ando no 6º ano de Liceu e estou com a família em São Teotónio, terra da minha mãe. É o último dia das férias de Natal e vamos regressar a Faro nesse mesmo dia. Desde a manhã que o país está em polvorosa. As rádios não se calam e os jornais fazem segundas edições. Todas as notícias são do assalto ao Quartel de Beja e todas elas falam de um nome: o Capitão Varela Gomes. Embora todos conheçamos a história, é este acontecimento que marca aquilo que eu considero o fim do meu amadurecimento, ou da “pré-história” do meu processo de consciencialização política. E é esse nome que fica como o último dos meus heróis da juventude.
Os anos passam e a gestão das minhas contradições pessoais, levaram-me à carreira militar e ao 25 de Abril.
Logo a seguir a esta data, Varela Gomes foi, com toda a justiça, reintegrado com a patente de coronel e eu vou finalmente conhecer, pessoalmente, aquele que foi um dos heróis da minha juventude. Tive realmente essa oportunidade e esse privilégio e acabei por privar com ele, ter sido seu amigo e sentir, da parte dele, a retribuição dessa amizade.
O Varela Gomes era tudo aquilo que eu tinha imaginado. A opção de vida dele e a sua causa foram sempre servir o povo português. Nessa opção, para além de ser norteado por um pensamento politicamente correto, democrático e inteligente, procurou e conseguiu sempre, ter uma intensa, consequente e corajosa atividade político-militar. Tinha uma enorme força interior, era extremamente decidido e voluntarioso, mas muito sensato e teve sempre a arte de criar um fantástico leque de colaboradores que, com ele, construíram e partilharam algumas das mais decisivas estruturas político-militares, que permitiram apoiar as lutas populares que fizeram com que o 25 de Abril, de um mero Golpe de Estado, se transformasse numa verdadeira revolução. Tinha ainda uma outra característica que só os inteligentes têm: um excelente sentido de humor.
Pessoalmente, partilhei com ele alguns episódios que ilustram tudo aquilo que atrás referi, dos quais me apraz sempre evocar dois deles.
As conspirações andam sempre juntas com as revoluções e, entre nós elas começaram logo no próprio dia, com uma intensa e sem tréguas – durante 19 meses – luta pelo poder, entre as novas e as velhas estruturas sociais, políticas e económicas. Logo no início, essas lutas foram corporizadas, de um lado, por aqueles jovens militares que haviam conduzido o golpe militar e queriam cumprir o Programa do MFA e, do outro, por aqueles velhos generais que estes tinham escolhido para integrarem o topo do Estado, nomeadamente Spínola e os seus apoiantes. A primeira fase dessa luta foi em torno do “regresso aos quarteis”, advogado pela facção que queria que os jovens militares que tinham preparado, planeado e conduzido o golpe, fossem integrados na estrutura convencional das Forças Armadas, e “desaparecessem politicamente”. Isso significava, obviamente, entregar de mão beijada, a totalidade do poder ao Spínola/Junta de Salvação Nacional, o que os Jovens militares, cientes de que isso seria o regresso ao “antigamente” e a derrota do Programa do MFA, não permitiram. Ora nesse processo de luta, acabaram por estar envolvidos, do lado dos Spinolistas, alguns militares que tinham sido muito importantes para o sucesso do 25 de Abril e isso “fazia muita mossa”. Um deles, um prestigiado capitão, era um dos mais ativos militantes dessa campanha do “regresso aos quarteis”.
Um dia, estando eu ainda na então “sede” do MFA, na Av. Infante Santo, na Ex Secretaria de Estado da Defesa Nacional, em conversa com o Coronel Varela Gomes, acerca desta “luta”, ele pergunta-me: “Diz-me lá qual é o perfil militar e pessoal dele (do tal Capitão)?” Eu lá lhe refiro que ele é muito inteligente, voluntarioso, prestigiado e respeitado (embora também odiado). Para além disso, tecnicamente, é muito competente, embora seja também muito militarista e Hiper egocêntrico. Com aquele seu sentido de humor, ele sorri e diz: “Ah ele é muito competente, militarista e egocêntrico? Então tenho já uma solução para ele.”
Com o fim do fascismo, Portugal tinha finalmente estabelecido relações políticas e diplomáticas com todo o mundo. E o bom do Varela Gomes envia então o dito capitão numa missão militar prolongada à então RDA. Tempos depois, já eu tinha esquecido o assunto, continuava ainda na Infante Santo e deparo com o tal capitão, fardado de nº 1, que se vinha apresentar formalmente ao Coronel Varela Gomes, após ter comprido a referida missão na RDA. Alertei o Varela Gomes que me convidou a assistir à conversa. Tinha-se dado um milagre, uma conversão total e absoluta. Para além da admiração sem limites com que tinha ficado pelas forças armadas da então RDA, a adesão política às ideias da RDA era total e a sua interpretação acerca da finalidade do muro de Berlim era exatamente a oposta da que tinha todo o mundo. Acabou por se tornar o presidente da Associação de Amizade Portugal-RDA. O Varela Gomes ouviu tudo com o ar mais sério e grave possível e só se desmanchou após a saída do capitão, dizendo-me: “Eu não te disse? E a tal guerra do ‘regresso aos quarteis’ acabou por se extinguir…”
O segundo episódio tem a ver com o 11 de Março. Nessa noite, já as mais ativas e conhecidas movimentações militares tinham acabado, já alguns dos golpistas estavam detidos e outros em fuga, embora uma enorme frota da NATO ainda estivesse à volta das nossas águas territoriais e a divisão blindada espanhola Brunete ainda estivesse estacionada na estrada Madrid-Elvas. Do “nosso lado”, após a primeira reação vitoriosa ao Golpe (em que Otelo e Varela Gomes têm uma ação decisiva), parecia que se tinha abatido sobre as estruturas do Estado uma paralisia total. Nada estava a acontecer de importante, nem no campo militar, nem no campo político. As dúvidas, as desconfianças e as interrogações continuavam a ser imensas. Os objetivos, os implicados, os cúmplices e os limites do Golpe ainda estavam longe (até hoje) de ser totalmente conhecidos.
E é então que surge mais uma vez a figura do Coronel Varela Gomes. É ele quem, perfeitamente consciente de que, ou o MFA tomava de imediato iniciativas e decisões estruturais e nacionais de fundo, ou era o seu fim imediato, começa a telefonar, a alertar e a convocar todas as estruturas do MFA e muitos militares fora delas, mas com “peso político”, para a reunião imediata de uma Assembleia do MFA alargada, no então Centro de Sociologia Militar na Calçada das Necessidades. Chegado lá encontro aquela enorme sala já completamente cheia. O ambiente é de enorme tensão e ele pergunta-me: “E onde é que andam o Presidente da República, mais a Comissão Coordenadora, o Conselho do Vinte e essa gente toda??” . E eu disse-lhe: “Que eu saiba estão todos calmamente e descansadamente a jantar em Belém”. Metemo-nos então ambos no meu carro a caminho de Belém, julgo que com o Duran Clemente. Irrompemos pelo banquete adentro e lá fomos “despertar” do seu beatífico torpor” as estruturas cimeiras do Estado, dizendo-lhes o Varela Gomes: “Está uma Assembleia alargada das Forças Armadas reunida e vamos tomar decisões, com, ou sem a vossa presença”. Saímos dali diretamente para a Calçada das Necessidades e,… surpresa das surpresas, … quando entrámos na sala, já os comensais de Belém lá estavam.
Foi a impropriamente chamada Assembleia Selvagem, que decidiu coisas importantíssimas e onde o Coronel Varela Gomes, serena, mas firmemente, se insurgiu e se opôs formalmente aos tais fuzilamentos, evocados por um ou outro mais excitado participante naquela Assembleia.
Claro que, para a normalização do país, para o Regresso à Ordem, leia-se à Velha Ordem, era essencial afastar Varela Gomes e quem com ele partilhava dos mesmos ideais.
Este regime prestou-lhe, uma vez mais, essa honra e ele ficará para sempre nas nossas memórias.
O meu herói da juventude ficará para sempre impoluto.