José Aranda da Silva
Cor. Farmacêutico do Exército (Reforma)
Um camarada, um bom amigo, com quem muito aprendi
Ao me ser pedido, pela Gena Varela Gomes, um depoimento para o sítio na internet “centenariovarela.pt” que está a ser organizado pelo António Louçã, tive alguma dificuldade em decidir o conteúdo.
Após ler os depoimentos já publicados, que discorrem sobre a História e histórias protagonizadas por João Varela Gomes, decidi contar algumas histórias centradas na nossa atividade na 5.ª Divisão, onde, afinal e durante quase dois anos, com ele privei diariamente.
Desde miúdo que o nome Varela Gomes me era familiar e o ouvia regularmente em casa. Meu pai, Elísio Rainha da Silva, antifascista militante, da geração neorrealista Coimbrã (companheiro e colega de Liceu de Fernando Namora, Cochofel, Carlos de Oliveira, Joaquim Namorado e muitos outros), emigrou, no final da Grande Guerra, para Moçambique, onde vivia o seu pai. Militou nos vários movimentos antifascistas locais com comunistas, como Miguel Russel, Cansado Gonçalves e Oliver Bártolo, e pertencia ao grupo dos denominados “Democratas de Moçambique” onde militavam conhecidos advogados, como Almeida Santos, Adrião Rodrigues, Daniel de Sousa, Pereira Leite, Santa Rita, Raposo Pereira e Rui Baltazar, assim como médicos, professores, farmacêuticos e empresários. A minha “Madrinha” (sem batizado), Teresa Pestana, teve o irmão, Francisco Pestana, envolvido na revolta de Beja pelo que, naturalmente, Varela Gomes era uma figura que admirava desde miúdo.
No 25 Abril, e após atribulada recruta na Escola Prática de Infantaria, fui colocado, como aspirante a oficial miliciano do Exército, na Escola de Serviço de Saúde Militar, Junto ao Hospital Militar Principal (com Rui Pato e Rui Namorado). Por decisão superior fui requisitado para a Força Aérea e colocado no recém-criado Núcleo Hospitalar Especializado da Força Aérea (NHEFA), no Lumiar, onde hoje está situado o Hospital das Forças Armadas (HFAR).
Por essa altura, os oficiais milicianos de esquerda e com ligação ao movimento associativo estudantil, das mais diversas tendências políticas, encontravam-se regularmente num Edifício da Artilharia 1.
Entretanto, constitui-se a Assembleia dos Duzentos, com representantes das várias unidades, e juntamente com o médico Major Jorge Manaças fui eleito representante do NHEFA. Estava entusiasmado na organização de uma nova Farmácia Hospitalar, quando sou requisitado para a recém-criada 5.ª Divisão do Estado Maior General das Forças Armadas (EMGFA). Nessa nova Divisão estavam colocados dezenas de oficiais, nomeadamente da Comissão Coordenadora do Movimento das Forças Armadas (MFA). Estava organizada em várias áreas: Dinamização Cultural, Centro de Esclarecimento e Informação Pública; Centro de Relações Públicas e Centro de Sociologia Militar (Begonha; 5.ª Divisão do MFA; Revolução Cultural; Edições Colibri, 2015).
Instalada provisoriamente numa parte do edifício da Assembleia da República, passou posteriormente a ocupar vários edifícios: no EMGFA na Cova da Moura, no Centro de Sociologia Militar na Rua das Janelas Verdes (estúdios) e na Rua Castilho.
Apresentado na 5.ª Divisão, tive o primeiro contacto direto com o Coronel Varela Gomes. Estávamos num período de organização, associado a grande instabilidade política, pelo que as primeiras tarefas atribuídas tinham a ver com intervenções relacionadas com a ocupação de prédios em construção. Recordo-me muitas vezes das dificuldades que tivemos em convencer a população, vinda de bairros de barracas, a desocuparem os edifícios inacabados pois corriam riscos enormes. Recordo uma intervenção, próxima de Chelas. O objetivo era convencer a população a desocupar um prédio de cerca de 20 andares, apenas com a estrutura construída. A coordenação da operação foi feita por Varela Gomes e sustentada pelo Gabinete do Secretário de Estado da Habitação e Urbanismo, arquiteto Nuno Portas.
Correram-se riscos físicos, tanto os militares como os ocupantes, mas chegou-se a um acordo e o prédio foi desocupado pacificamente.
Outras ações tinham a ver com sessões de esclarecimento em Fábricas. Como era Farmacêutico, participei em diversas ações da indústria Química e Farmacêutica, mas só me recordo de uma no LEPETIT, onde encontrei o meu amigo e colega Pedro Coelho e a Esmeralda André. Recordo ainda outra, em Coina, na Pfizer onde encontrei o Prof. Lício Silveira Godinho, mais tarde Professor Catedrático da Universidade Nova.
Era a Varela Gomes que reportava nessa altura. Era o meu grande conselheiro e tratava-me como se fosse seu filho. O muito que se propalava sobre o seu radicalismo verbal em certos momentos, era sempre contrariado pelo seu pragmatismo na análise objetiva das situações que enfrentávamos e tínhamos de resolver.
Também participava em missões especiais, como a que se realizou em Moçambique, quando o Comte. Victor Crespo foi nomeado Alto-Comissário, no início de setembro, após a tentativa de ocupação da Rádio Clube de Moçambique por forças hostis ao MFA. Embarcou com ele um grupo de jovens oficiais, comandados pelo meu amigo de infância em Moçambique, Cap. Tenente Eduardo Rosário Dias, que, antes da tomada de posse do Governo Provisório, visitou todas as regiões militares contactando com os oficiais do MFA e com os Comandantes das Regiões Militares. Recordo-me que desembarcámos em Lisboa a 28 de Setembro de 1974, onde a situação era explosiva com a anunciada manifestação da Maioria Silenciosa.
Após o regresso de Moçambique e como resultado da “intentona” do 28 de Setembro, foi dada maior atenção à organização da 5.ª Divisão, cujo comando foi assumido pelo Coronel Robin de Andrade.
O Comte. Manuel Begonha, no seu livro “5.ªDivisão MFA Revolução Cultural”, descreve o importante papel que teve a informação prestada por esta divisão junto da população, na denúncia da tentativa de golpe de Estado. Também António Louçã, autor da biografia “Varela Gomes, que outros triunfem onde nós fomos vencidos” (Parsifal), descreve bastantes pormenores sobre essa ação.
Sendo secretário da redação do Boletim do MFA, contatava constantemente com Varela Gomes. O Boletim teve, no início, 40.000 exemplares de tiragem, chegando a ultrapassar os 140.000, em 1975. O núcleo redatorial do Boletim foi variando ao longo do tempo. José Manuel Barroso, Capitão miliciano e jornalista, era o Chefe da Redação. No corpo da redação: Comte. Bouza Serrano, 1.º Tem. Almeida Moura, Cap. Duran Clemente, Cap. Jorge Alves, Aranda da Silva, Carlos Gaspar, Medeiros Ferreira, António Ventura. Colaboravam regularmente: Major Loureiro dos Santos, Comte. Ramiro Correia, Comte. Martins Guerreiro, Major Pinto Ferreira e muitos outros, nomeadamente civis de renome. A origem dos artigos era diversa e, quando havia discordância do conteúdo, um elemento da redação era encarregado de ir falar com o autor. Dado considerarem ter eu a habilidade de encontrar consensos, fui encarregado muitas vezes dessa missão. Recordo-me de interessantes discussões como os então Majores Loureiro dos Santos e António Pimentel, que muito mais tarde se tornaram bons amigos.
No dia da tentativa de golpe de 11 de Março ficámos os dois, Varela Gomes e eu, na Cova da Moura, a coordenar a informação que vinha chegando, pois a maioria dos oficiais tinham ido para o Ralis ou estavam em missões no exterior, nomeadamente na RTP e Emissoras de Rádio.
Os aviões da Força Aérea do lado dos revoltosos, em manobra intimidatória, “picavam” sobre o edifício da Cova da Moura tentando assustar as pessoas que lá trabalhavam, muitos delas civis.
Nessa noite realiza-se a célebre Assembleia do MFA, cuja descrição está hoje publicada em livro “A Noite Que Mudou a Revolução de Abril, a Assembleia Militar de 11 de Março” (Edições Colibri, 2019).Um trabalho muito importante realizado pelo Cor. Vasco Lourenço; Comte. Carlos Contreiras e Jacinto Godinho. Estive presente nessa Assembleia e considero que, na transcrição, faltam algumas intervenções e outras não têm o autor identificado.
Após o 11 de Março, aumentou a importância do Boletim como órgão oficial do MFA e braço de informação, primeiro da Coordenadora do MFA e, depois e de forma mais indireta, do Conselho da Revolução. Obviamente, o trabalho também aumentou.
O agudizar das contradições no seio do MFA, com a criação do “Grupo dos Nove”, colocou a 5.ª Divisão “debaixo de fogo”. Em agosto de 1975, Carlos Fabião critica a atuação da 5.ª Divisão. A célebre Assembleia de Tancos foi a machadada final.
Muitos oficiais receberam guia de marcha para regressar às unidades de origem, como foi o meu caso, com o regresso ao Hospital da Força Aérea, no Lumiar. Passadas umas semanas fui chamado ao Diretor (que tinha sido meu vizinho em Lourenço Marques) e recebo a ordem de “fazer o espólio” em 24 horas, pois tinha sido dispensado da Força Aérea (que me tinha requisitado ao exército no ano anterior).
Passo o 25 de Novembro já como civil, apesar de ainda ter desempenhado algumas tarefas de importância nacional, nomeadamente em Tancos, a 27 de Novembro… mas cuja descrição será feita noutra ocasião. Passo o Natal em casa dos meus sogros, no Fundão. Éramos um casal de licenciados que, em Coimbra, Porto e Lisboa, lutaram pela liberdade e pela democracia, contra o fascismo. Participaram, desde os anos 60, em muitas lutas arriscando a prisão. No Natal de 1975, com dois filhos, estávamos ambos desempregados.
Em janeiro começámos nova vida. Consegui entrar no sistema de ensino como professor provisório e dar aulas de Físico-Química. Maria Eugénia, minha mulher, devido à sua ligação comigo e consequente conotação política, foi descaradamente preterida em concurso para a D.G. de Saúde, acabando por concorrer à abertura de uma Farmácia, em Mira Sintra.
Convencido por colegas do Exército, que trabalhavam no Laboratório Militar (Lobo da Silva, Damas Mora e Ernesto Ennes), concorri ao Quadro Permanente, em 1976, depois de fazer exaustivo estágio no Laboratório Militar, vivendo das aulas que dava das 19h às 23h, na nova Escola Secundária instalada no Colégio Marista, perto de casa.
No concurso fiquei em primeiro lugar, muito distanciado dos restantes concorrentes. Segui a carreira Militar, tendo terminado como Coronel e Diretor do Laboratório Militar. Tive uma requisição civil, por interesse nacional, sem interrupção da carreira militar, para exercer as funções de Diretor Geral de Assuntos Farmacêuticos e criar uma bela equipa no INFARMED.
O meu regresso às Forças Armadas tem a ver com o que aprendi com Varela Gomes. Nunca desistir e lutar onde julgamos podermos ser mais úteis.
No início, referi-me ao meu ambiente familiar em Moçambique. Varela Gomes, quando esteve exilado em Moçambique, tornou-se amigo de meu pai, que só regressou a Portugal, doente, em 1993.
Julho 2024