Vanessa Espírito Santo
Membro da Comissão de Trabalhadores da RTP
Obrigada pela liberdade
Nasci em 1986, ano em que Portugal aderiu à União Europeia, 12 anos após o 25 de Abril de 1974. Considero-me sortuda. A meu ver, foi o “timing” perfeito para vir ao mundo. Vivenciei o melhor do ontem (brincar na rua, jogar à bola, andar de bicicleta, perder horas diante de um jogo de tabuleiro ou a ler livros…) e estou a assistir aos acentuados avanços tecnológicos e à grande evolução em termos de mentalidade e princípios, tudo isto num país vibrante e em constante transformação.
Sou mulher. Cresci sabendo que o casamento não era algo a que aspirasse, a ideia de ter filhos nunca me cativou e o ideal de ser uma fada do lar sempre me fez esboçar um sorriso sardónico. Mas, sendo mulher no Portugal pós-revolução dos cravos, eu tenho uma escolha. Nem sempre foi assim.
Antes daquele dia fatídico de abril, aquando do Estado Novo, a mulher era considerada inferior ao homem. Os seus direitos eram tão limitados que nem podia viajar sem a autorização do marido. Uma mulher nascia pertencendo ao pai, casava e passava a pertencer ao esposo. Existia para procriar, governar a casa e criar os filhos, sempre submissa perante a figura masculina. Um ambiente propício a maus-tratos, que, quando denunciados, eram desvalorizados e justificados como sendo a forma correta de disciplinar uma esposa desobediente.
Sou filha de uma retornada. A minha mãe guarda muita mágoa. Culpa o 25 de Abril pela entrega dos territórios africanos e pela sua fuga para um Portugal que mal conhecia. Queixa-se de ter sido vilipendiada pela pátria e pelos compatriotas. Invoca Salazar, referindo-se a ele como um grande homem. Os seus argumentos para tal elogio? Na época de Salazar havia respeito, não havia crimes, as pessoas não passavam fome e as colónias eram bem geridas… Já perdi a conta aos jantares que acabaram em debates acesos. Talvez a distância de Portugal e Angola tenha diluído a influência nefasta do regime opressor, ou talvez seja só o saudosismo a fazê-la recalcar memórias menos boas. O que é certo é que há várias histórias familiares, contadas até com uma certa leviandade, que me causam calafrios desde pequena.
Conta a minha avó materna que nunca conseguiu realizar o seu sonho de ser cabeleireira porque o pai não via com bons olhos que uma menina de bem se ausentasse de casa sozinha para aprender um ofício – e não o permitiu. Uns anos depois, a minha avó casou, foi para Angola, teve filhos e o sonho permaneceu… um sonho.
A minha avó paterna casou com um marinheiro. O meu avô ausentava-se durante meses para pescar bacalhau nos mares frios do norte. Antes de partir, ia buscar a sogra para viver com (e controlar) a mulher na sua ausência, que, segundo ele, era demasiado bonita para deixar à mercê de possíveis pretendentes. Mesmo assim, essa minha avó gozou de mais liberdade do que muitas mulheres da altura, mas porque a ausência do marido assim ditou. Contava ela que quando ele regressava, a sua vida mudava sobremaneira. Contou-me uma vez que sofreu de bócio e que o marido a proibiu de recorrer à operação, sugerindo-lhe que usasse um lenço para esconder o alto que lhe crescia no pescoço. A minha avó, sendo um mulher “com pelo na venta”, como ela própria dizia, esperou que ele embarcasse para se operar. Pergunto eu, e se o meu avô não fosse marinheiro? Teria ela tido coragem para desobedecer?
Houve outra história que me marcou muito, esta relatada pelo meu pai. Contava ele que na escola tinha tido dois colegas irmãos que muitas vezes partilhavam uma sardinha ao almoço. Uma sardinha! Dizia ele que a minha avó fazia questão de lhe mandar carne de cozer para o almoço para que não se sentisse burguês e superior aos colegas. Dizia o meu pai que não era atípico que colegas dele almoçassem porções insignificantes de um qualquer “peixe dos pobres” porque a pobreza realmente proliferava. O meu pai nasceu em 1956. Imaginem Lisboa nos anos sessenta.
Voltando às minhas avós, tenho a dizer o seguinte: num Portugal profundamente tacanho, tinham as duas a quarta classe, portanto, conseguiram esquivar-se ao analfabetismo, algo que me deixa extremamente orgulhosa e quiçá um pouco perplexa.
Olho para estas histórias de vida, e sinto-me uma pessoa privilegiada. Voto desde os 18 anos, conduzo desde os 19, tenho um curso superior, uma carreira que me orgulha, e, mais importante ainda, nunca passei fome e não pertenço a ninguém. Tenho também um companheiro que não me limita, pelo contrário, ajuda-me a alcançar os meus objetivos, posso partilhar o que penso sem receio, encontrar-me com amigos sem ser acusada de promover “ajuntamentos”, sair de casa sozinha e sem autorização para me sentar numa esplanada a beber um café e a ler um livro que não passou pela censura e respetivo lápis azul.
Liberdade, foi isto que pessoas como Varela Gomes conseguiram para nós. Liberdade, algo que a minha geração acaba por tomar como garantida porque nunca se viu numa situação em que lha tentam sonegar. Os capitães de Abril e de todos os restantes meses do ano lutaram para que nós pudéssemos desfrutar da vida em pleno, sem as amarras de um regime que já cheirava a bafio.
A escola não me ensinou o nome deste capitão de janeiro, mas agora que me foi dada a conhecer a sua história, sinto uma profunda gratidão e sei que também lhe devo o estilo de vida que tenho.
Não me parece que seja possível sentir saudade de uma pessoa que nunca conhecemos, mas a empatia, essa existe, e manter-se-á para sempre. Ainda bem que este meu compatriota permaneceu irredutível, não depondo as armas e não deixando que lhe limassem as arestas.
Da minha parte, continuarei a honrar a sua luta à minha maneira: não permitindo que me pisem, combatendo todo e qualquer tipo de misoginia que me seja dirigida e vivendo plenamente, com o objetivo de alcançar todo o meu potencial sem nunca me sentir limitada pelo meu sexo.