23 de Junho, 2024

Professor catedrático aposentado, Universidade de Coimbra

A insubmissa ternura de um militar

Por José Oliveira Barata

1 – Estamos em 1961. No último dia do ano. Castelo Branco era uma pacata cidade do interior, onde qualquer alteração às rotinas estabelecidas, corria com um vagar quase alentejano para se prolongar no comentário de café ou no passeio público junto ao kiosque do Senhor Vidal…Qualquer albicastrense estará já situado.

Noite de passagem de ano. Uma volta pela cidade com paragem obrigatória no ‘madeiro’ que ardia à porta da Igreja, para logo regressar a casa e assistir ao réveillon a preto e branco na RTP.

Á meia noite em ponto, porém, a cidade fica sem luz. Virá depressa, dizem… Não vem. Demorará o suficiente para se desistir da televisão e dar por finda a passagem de ano.

O Ano Novo começou, pois com a desilusão por não ter visto o réveillon televisivo. O Albino, o incansável vendedor de jornais, dava a notícia: tinha havido uma “coisa contra o Salazar”; o meu primo Manuel Barata, já tinha passado pelo Café Arcádia e “soubera” que a coisa era séria….

O jornal trazia a notícia do golpe de Beja; aí vinham o nome do Capitão João Maria Paulo Varela Gomes, do Estado Maior do Exército e a terrível palavra ‘intentona’ que alguns desconheciam no escasso léxico ‘político’ permitido dos jornais.

Poucos dias depois, pela Reconquista (7 de janeiro de 1962) Castelo Branco sabe das muitas manifestações de repúdio das ‘forças vivas’, mas continua a ignorar  que tinham sido  presos alguns elementos ‘afectos’ ao PCP, bem como o director da Hidroelectrica do Tejo, responsável primeiro  pelo ‘apagão’…

Foi a primeira vez que ouvi falar de Varela Gomes. Tinha treze anos. O meu pai, funcionário público, temia o chefe de secretaria da Brigada Agrícola onde trabalhava mas, sobretudo, percebia-se que igualmente gostava pouco de falar de política com a minha avó, professora primária seguidora das capas dos livros por onde ensinava: Lei, Grei, Pátria e aqueles pretinhos em terna brincadeira à sombra dos castelos e quinas…

2 – No Liceu, os professores colocados no Nuno Álvares Pereira, cumpriam, na sua maioria, um ‘degredo’ administrativo. Esta estratégia, pensada como forma de ‘isolar’ desafectos do regime, acabou por se traduzir na formação de alunos que ‘ouviam’ nas aulas versões bem diferentes do que ‘dizia’ a televisão ou os jornais. A ‘intentona’ passara a ‘revolta’ e um desses professores quando viu um dos meus colegas chorar na aula porque o pai fora preso nessa manhã, apressou-se a dizer-nos que “o pai estava preso não porque fosse um ladrão, mas antes porque lutava pela democracia”… E falou de Varela Gomes…

 

3 – Muito tempo passou até ao Colóquio sobre o Barroco organizado em Queluz e onde me reencontro com o nome Varela Gomes: Paulo Varela Gomes. Historiador de Arte, emergente no mundo universitário e em trânsito para a Faculdade de Arquitectura de Coimbra.

Também por essa altura – 1981 – a Manuela, minha mulher, no âmbito da história oral decidira ouvir Maria Eugénia Varela Gomes, recolhendo para a ‘história’ uma vida ‘contra ventos e marés’. Foram muitas as vezes que tive oportunidade de entrar naquela modesta casa da Lapa. Maria Eugénia era uma figura de uma qualquer pinacoteca…. A aristocrática dignidade que inspirava resultava de uma sábia conjugação de uma sólida cultura com o exercício de uma prática militante, destemida e orgulhosa pela coerência. A boina, a perspicácia do olhar azul sobre a cinzenta realidade das coisas, conferia-lhe um especial ‘charme’; cativante companhia que perpassa por inteiro no livro que a Manuela construiu com ela.

 

4 – E assim surgia cada vez mais presente Varela Gomes. Pertenceu a uma geração de militares – que ainda conheci em Vendas Novas – para quem a carreira das armas era mais do que ordem unida e treino físico-militar. Seguir a vida militar era também ganhar progressivamente o ‘status’ de ‘descobridor do mundo’, disponível para ‘a aventura’, a viagem, como tanto gostava de referir Varela Gomes ao invocar “On the Road” de Kerouac. Ao longo da entrevista com Maria Eugénia fui conhecendo o meu novo chefe ‘artilheiro’. Culto, rezingão, arranjador de tudo o que necessário fosse naquela casa, devorador implacável da bibliografia sobre o antes, durante e pós 25 de Abril.

Numa ‘espécie de escritório’, escrevia e imprimia ‘recensões críticas’ que mereciam ser compiladas pois, na discordância que revelam, ilustram a faceta de um “militar” diferente; informado, polémico mas sempre coerente e disponível para ‘discutir’.

Varela Gomes era no puro sentido etimológico um ‘iconoclasta’; um ‘destruidor de imagens’; sobretudo das ‘feitas’, ‘construídas’ e difundidas por interesses ‘contra-revolucionários’.

Por entre o rio tumultuoso, revolto, rebelde na aceitação de ortodoxias forjadas, Varela Gomes passeava na coloquialidade ‘compincha’ uma ternura solidária que atraía e seduzia quer quando cuidava amorosamente da Maria Eugénia, quer quando nos recebia (à Manuela e a mim) como se fossemos amigos de há muito…

E talvez assim fosse… Desde aquela noite de 1961 em Castelo Branco…

Posso retirar-me, meu comandante? Falta só o abraço!