22 de Junho, 2024

Militar de Abril

No Centenário de Varela Gomes

Por Jorge Sales Golias

Recorro ao ano de 1961 em que entrei para a Academia Militar. Comigo estiveram vários e importantes capitães de abril: Duran Clemente, Faria Paulino, Jorge Alves. No ano anterior outros tiveram papéis decisivos como Vasco Lourenço e Aniceto Afonso e em 1962 talvez tenha entrado na AM a maioria dos capitães de Abril.

Mas foi o ano de 61 que passou à História como o annus horribilis de Salazar. Tudo lhe aconteceu de mau: Em Janeiro o assalto ao paquete Sta. Maria por Henrique Galvão. Em Fevereiro o início da Guerra Colonial, em Angola. Em Abril o Golpe Botelho Moniz. Em Agosto a perda do Forte de São João Baptista de Ajudá. Em Novembro o desvio para Casablanca do avião da TAP por Palma Inácio. Em Dezembro a Invasão da Índia e na passagem do ano o Golpe de Beja. Foi aqui, neste assalto a um quartel planeado no contexto da luta iniciada por Humberto Delgado, que se revelou à minha geração o nome de João Varela Gomes.

Na minha memória política já havia heróis militares, o primeiro o capitão Sarmento Pimentel, meu conterrâneo que, estando na Escola do Exército em Outubro de 1910 para fazer cadeiras na 2ª época, logo se juntou aos homens de Machado dos Santos na Rotunda. E não mais parou até que, na Monarquia do Norte, deu-se alta do Hospital Militar no Porto, onde estava com a pneumónica, e pôs fim à última tentativa de Paiva Couceiro. Mas esta história, antes de a ler com detalhe, foi-me contada por outro republicano, também meu conterrâneo, o Coronel Eduardo Faria que um dia me disse algo que nunca mais esqueci e que de algum modo contribuiu para seguir a carreira militar: – Sabes que agora reformado estou menos seguro do que no activo. Perguntei porquê. Respondeu que no quartel a PIDE não entrava e se falava com mais liberdade do que cá fora.

Eu, que nunca vesti a farda da Mocidade Portuguesa, apesar de jogar andebol na equipa do Liceu, que nunca vesti a farda da milícia, mas que ainda adolescente, já tinha trabalho político e ligações aos oposicionistas de Mirandela, por um lado os militantes do PC, que foram um dia levados pela PIDE para o Porto, presos, e que levou a Vila a manifestar-se e a instar o então ministro do interior Trigo de Negreiros (mirandelense) a libertá-los. O que fez após uns meses de prisão. Registo que um deles, o Joaquim Natal, já tinha estado no Tarrafal. Era alfaiate e era na oficina dele que passava algumas horas nas férias. Aliás, quando me abriram as páginas do jornal local foi a primeira história que contei com o título de Homens Bons de Mirandela.

Em 1958, estava eu no Liceu de Vila Real e fiz parte da Comissão de Recepção da Academia Vila-realense ao General Humberto Delgado. Três anos depois, na AM da Amadora assistia então ao final do ano horrível de Salazar, que deve ter deixado no ar, conforme Varela Gomes um dia confessou, a ideia de que o Regime estava a cair de podre e que bastaria um empurrão para o fazer cair. Não foi assim, a História é demais conhecida, o valente capitão foi ferido com muita gravidade e preso durante seis anos. A minha galeria de heróis tinha agora mais um, afinal o único com quem me viria a cruzar.

Durante a minha passagem pela AM fiz parte de um grupo que deixou marcas fortes de manifestações culturais e políticas que nos mereceram processos na Pide e no Estado Maior e foi nestes momentos que percebi melhor as palavras do coronel Faria pois me sentia mais seguro dentro do que fora do quartel. Estive, e ainda estou, ligado ao maior grupo de oficiais desertores que houve na história das deserções da guerra colonial.

Em 25 de Abril de 74 estava eu na Guiné onde conheci mais um camarada mais velho, o Ten-Coronel Luís Banazol, que quis fazer a revolução em Portugal e acabou por me procurar na Guiné, aconselhado pelo Otelo, para a fazer em Bissau. Esta história também é conhecida. Porque conto tudo isto e que tem isto a ver com Varela Gomes. Para que se entenda que na altura da Revolução dos Capitães eu já tinha uma galeria de heróis, inspiradores e incentivadores que muito contribuíram para que um oficial engenheiro se tornasse num revolucionário desde a primeira hora, tendo sido o primeiro na Conspiração a apelar à revolução armada. O que têm de comum todos estes heróis: pensamento político (com obra escrita) e acção militar (com intervenções de alto risco).

Então, tinha todas as condições para me aproximar do capitão, depois logo Coronel Varela Gomes, e fazer com ele a caminhada da revolução de Abril. Tal não aconteceu, vou tentar perceber e explicar porquê, porque nunca meditei sobre isto.

A primeira notícia que me lembre que me chegou de Varela Gomes foi através do Melo Antunes numa missão da Comissão Coordenadora à Guiné. Em Lisboa não se percebia o que o MFA na Guiné andava a fazer, que decidia sozinho matérias da responsabilidade da JSN e/ou do CEMGFA. Pois, como não respondiam aos nossos pedidos de tomada de decisões, decidíamos antes que alguém o fizesse por nós. O poder tem mesmo horror ao vazio. Se se tem e não se exerce alguém o vai fazer. Mas esta também é História conhecida. Vamos então à parte em que Melo Antunes nos dá notícia do Varela Gomes.

Disse ele que “o problema Varela Gomes é o choque de duas linhas: a esquerda e a direita. Ofereceu-se para trabalhar no desmantelamento da Legião e da PIDE. A certa altura levanta-se o problema de o sr. Varela Gomes não ser oficial do Exército e o CEME (Gen. Silvino Silvério Marques) deu-lhe ordem de prisão. Houve alguns camaradas que reagiram alertando os quartéis para sair à primeira ordem. O General Spínola mandou-o soltar. Mas neste momento ele deixou de exercer essa função” (na verdade, Melo Antunes cometeu aqui um lapso, porque a ordem de prisão foi dada pelo general Jaime Silvério Marques, membro da JSN).

Foi esta a primeira informação que tive do Coronel Varela Gomes, que foi logo depois disto promovido e mais soube depois outros pormenores acerca deste incidente, sobretudo a cilada a que foi atraído para ser preso e a atitude corajosa do Diniz de Almeida para a sua libertação.

Mais tarde, já depois da independência da Guiné, aí por Outubro de 1974, eu estava como Assistente de Administração dos CTT/TLP, com a única regalia consentida de ter parqueamento para o meu carro, o Fabião assume a chefia do EME e convoca-me para o GDE com a missão de fazer em Portugal o que tinha programado e coordenado na Guiné – a Institucionalização Democrática do MFA, pela criação de órgãos nas unidades, eleitos democraticamente – as ADU’s (Assembleias de Delegados das Unidades). Pouco tempo depois, deu-se a estruturação democrática dos órgãos de coordenação dos três Ramos, sob a coordenação da 5ª Divisão. Foi aqui que contactei pela primeira vez com Varela Gomes, tendo-me ele convidado para a 5ª Divisão. Não aceitei porque tinha acabado de aceitar o convite do Fabião. Reparem que não digo “ordem” porque naquele período revolucionários alguns de nós não recebiam ordens. Só recebi uma ordem, essa sim, muito mais tarde, na tarde do dia 26 de Novembro, quando me mandaram fechar o Gabinete e aguardar ordens no corredor. Outra história que me abstenho de contar, porque também eu fui perseguido pelo regime pós 25 de Novembro, pela direita militar que tomou conta do Estado-Maior.

Veio então o facto que me aproximou mais do Coronel Varela Gomes que foi o convite para a visita de Estado a Cuba. Também já falei deste episódio em entrevista a António Louçã para a RTP, na data do passamento do Coronel. Vale, neste tempo memorialístico, recuperar algumas passagens e acrescentar algo mais com algum ineditismo. Gostei do convite e da equipa que foi constituída, representativa dos três Ramos.

Foi uma visita demasiado longa de cerca de 19 dias, durante os quais perdemos a possibilidade de votar pela primeira vez em Liberdade, para a Assembleia Constituinte.  Varela Gomes chefiou a primeira embaixada do MFA fora de portas e constituiu a equipa escolhida para representar os três Ramos com militares de diferentes tendências políticas.  Isto agradou-me e tirou-me argumentos para recusar a estada fora do País tanto tempo, dadas as circunstâncias das emergências diárias que então se viviam.

Fomos recebidos ao mais alto nível. Fidel deslocou-se à nossa embaixada, situação que nos foi indicada como excepcional. Entendi essa alta consideração porque a revolução portuguesa estava a ser vista como algo de extremamente importante no mundo ocidental, seguida pelas superpotências com o mais alto interesse, não só porque lutavam por conquistarem a atenção das colónias, mas também porque estava a acontecer algo de revolucionário dentro da Europa democrática.

Mas contou seguramente para a alta consideração prestada à comitiva o passado revolucionário de Varela Gomes, a sua personalidade forte que impunha respeito e também a esperança de que ele viesse a ser um vulto influente na revolução portuguesa.

Varela Gomes viveu os primeiros dias, aqueles em que nos iam sendo apresentadas as conquistas da revolução cubana, com a admiração comum a todos os elementos ao vermos bem resolvidos os problemas essenciais de uma revolução socialista: a Educação gratuita, onde conviviam bem jovens dos dois sexos e de diferentes etnias e onde nas universidades se produzia um bem de uso comum que ajudava a pagar os respectivos custos; a Saúde, também gratuita, e com uma classe médica trabalhadora e não elitista e já com a fama de dominar algumas especialidades da medicina; os Transportes, também gratuitos e abertos a toda a população e a Habitação, sendo o Estado um facilitador na criação de microbrigadas que construíam os bairros económicos. Mas também nos mostraram franjas da população que ainda vivia mal porque não queria participar no movimento associativo. Também nos impressionou que dentro das casas novas todas tivessem os electrodomésticos essenciais: frigoríficos, panelas de pressão, rádios, sempre todos iguais e de fabrico local. Recordo que uma das prendas que nos deram foi uma panela de pressão!

Foi esta a grande lição cubana que trouxemos destes longos dias, mas em que também houve alguns momentos menos positivos, em que alguns de nós sentiram algum cansaço e, sobretudo, da parte de Varela Gomes que, nem em situação de convidado ilustre e bem recebido, não abdicou da sua forte personalidade libertária, não gostando e declarando-o abertamente quando a segurança cubana nos seguia à distância pelas ruas de Havana. Numa dessas vezes, visivelmente irritado, virou-se para trás com o braço no ar para que o vissem e ouvissem bem e declarou-se farto de vigilância:” – Estou farto de Pides”.

Estive com esta missão no Centro de Sociologia Militar, uma grande iniciativa de Varela Gomes, na conferência que demos sobre a missão a Cuba. Recordo-me de ter descrito as conquistas de revolução cubana e de ter acabado a minha intervenção com esta frase (que reproduzo de memória): “Com todo o respeito pela revolução socialista cubana, nós temos de encontrar a nossa própria via para o socialismo, independentemente das vias soviética, chinesa ou cubana”. Fui bastante criticado pela parte final desta frase. Inclusivamente a embaixada cubana deixou de me contactar. Registo que Varela Gomes me felicitou!

Não voltei a ter mais contactos com o Coronel Varela Gomes, além dos encontros nas assembleias do MFA, em que quase só nos cumprimentávamos. Mas a este respeito conto que nas últimas nomeações dos representantes do Exército, na lista que me mandaram para o GDE não constava o nome do Coronel Varela Gomes. Perguntei porquê e como é que queriam justificar esta ausência, para mim absolutamente inaceitável. Não me lembro com quem falei. Mas foi-me dito que não havia mais vagas. Insisti na necessidade de incluirmos um camarada mais velho que tinha toda a legitimidade revolucionária para integrar o órgão máximo da Revolução. Foi-me perguntado quem é que eu queria tirar. Respondi que tirassem o meu nome. E foi assim que nas sessões seguintes eu estive lá apenas como secretário da mesa, representando o GDE, ao lado do Loureiro dos Santos, que representava o Conselho da Revolução. Varela Gomes nunca soube isto, e foi melhor assim.

Fecho este depoimento deixando bem visível a inscrição do Nome deste grande revolucionário, na galeria dos meus heróis da República e da luta pela Liberdade e Democracia em Portugal. E perfilho a grande máxima que proclamou depois do fracasso de Beja e que se mantém válida: “Que outros triunfem onde nós fomos vencidos”.

Carnaxide, 22 de Junho de 2024, nos 50 anos da Revolução e nos 100 de Varela Gomes