Artur Queiroz
Jornalista
O exílio do revolucionário
Luanda 74 era o nome de um programa de rádio na antena da Emissora Católica de Angola e eu colaborava com o Zé Maria, mágico dos botões e um dos mais talentosos sonoplastas que conheci. Aproveito para nomear os manos Neves (Artur e Fernando), Artur Arriscado e o monstro sagrado do som, João Canedo. A capital angolana assistia ao nascimento, diariamente, de partidos políticos, à boleia do 25 de Abril. Tudo a postos para os independentistas brancos tomarem o poder. A embaixada da África do Sul era a sede do governo sombra.
Os esquadrões da morte invadiam todas as noites os musseques de Luanda e matavam civis inocentes, incendiavam cubatas, espalhavam a morte e o terror. De Lisboa mandaram o governador Silvino Silvério Marques que já tinha servido o ditador Salazar no mesmo cargo. Jonas Savimbi deu uma entrevista à Emissora Oficial de Angola (hoje Rádio Nacional) e defendeu o federalismo proposto pelo Presidente Spínola, nestes termos: “Os angolanos não estão preparados para a independência. A solução é Angola ser um Estado federado a Portugal”.
Os esquadrões da morte eram constituídos por pequenos comerciantes dos musseques (cantineiros), agentes da PIDE/DGS e da Polícia de Segurança Pública, membros das tropas especiais, milícias da Organização Provincial dos Voluntários da Defesa Civil de Angola (OPVDCA). A FNLA estava paralisada desde a Revolta de Kinkuzu, a UNITA era uma unidade das tropas portuguesas às ordens do comando da Zona Militar Leste e o MPLA estava enfraquecido com as chamadas Revoltas (Activa e de Leste). Só tinha forças guerrilheiras em acção na II Região Política e Militar (Cabinda). Em Luanda os massacres atingiam a dimensão de limpeza étnica.
Os dirigentes que tinham refundado o MPLA naquela fase de transição, Hermínio Escórcio, Manuel Pedro Pacavira e Aristides Van-Dúnem mandaram-me a Portugal estabelecer contactos para mobilizar revolucionários portugueses com experiência em guerrilha urbana. Foi nesta altura que conheci o Coronel Varela Gomes.
O meu contacto na capital portuguesa era um misterioso “Senhor Rowland” que estava hospedado no Hotel Altis. Deram-me o número do seu quarto e só tinha que lhe dizer “sou neto do 4 de Fevereiro”. Fui recebido efusivamente e fiquei a saber que estava a falar com Arslan Humbaraci, um velho activista do MPLA. Tinha acabado de publicar um livro fabuloso, “As guerras africanas de Portugal: Angola, Guiné Bissau, Moçambique”. Prazer em conhecê-lo!
Humbaraci informou-me que já existia um grupo de revolucionários mas as suas identidades eram desconhecidas. O homem que tinha mobilizado esses militantes, conhecia os seus nomes e contactos era um Coronel do Exército Português que trabalhava na 5ª Divisão do Estado-Maior das Forças Armadas portuguesas, nomeado pelo General Costa Gomes. Nunca o tinha visto, mas conhecia bem o seu nome: Varela Gomes. Um militar que fez o 25 de Abril alguns anos antes de 1974. Homem de poucas palavras e muita eficácia, tanta que dois dias depois o grupo, devidamente armado e equipado, embarcou para Luanda na Base Aérea do Montijo.
Humbaraci apostava pessoalmente num revolucionário que fez treino de guerrilha urbana em Cuba. No 25 de Abril de 1974 estava preso no forte militar da Trafaria, porque foi detido em Espanha quando tentava entrar em Portugal para desencadear acções de guerrilha urbana. O guerrilheiro do asfalto tinha um estúdio no Cais do Sodré e criava cenários. Era o Comandante Alex, recentemente falecido. Apresentou-me um “quarteto de bombistas” que estava disponível para avançar imediatamente. Esses viajaram comigo num voo regular da TAP.
Os esquadrões da morte dos independentistas brancos, apoiados pelo governador Silvino Silvério Marques, mas também pelos consulados da África do Sul e dos EUA em Luanda, começaram a ter pela frente resistência armada. Sofriam emboscadas mortíferas nos becos dos musseques, As viaturas civis que usavam eram incendiadas. Rapidamente acabaram os massacres.
Num dos primeiros dias de fevereiro de 1976, o Presidente Agostinho Neto informou-me que tinha uma missão especial para mim. Tinham acabado de chegar a Luanda “camaradas portugueses que se exilaram no nosso país depois do triunfo do golpe de Estado militar em Portugal. Eles vão ficar alojados na casa de trânsito do Beco do Balão. Não lhes pode faltar nada. E para eu ter a certeza disso, o camarada a partir de hoje faz a ligação permanente entre eles e a Presidência da República”.
Parti imediatamente para a casa onde estavam os exilados portugueses e apresentei-me. Um deles era o Coronel Varela Gomes. Aquele homem que tanto nos ajudou a derrotar os esquadrões da morte, figura importante da Revolução dos Cravos, estava ali à minha frente como exilado! Nunca lhes faltou nada até todos serem integrados na sociedade angolana. Cada um foi para sua casa, tinha as suas funções e eu fui desmobilizado.
O meu amigo e colega Jorge Castilho fundou em Coimbra um jornal semanário (Jornal de Coimbra) e convidou-me para publicar semanalmente uma crónica à qual chamei “Estórias do Meu Amigo Charli Bar”. Foi o reencontro com o Coronel Varela Gomes mas por escrito. Apoiava, criticava, mas sobretudo aplaudia entusiasmado as denúncias à canalha cavaquista. Regressei a Angola e perdemos o contacto.
Com a sua morte, Angola perdeu um grande amigo. Portugal um revolucionário. E eu uma referência de vida. Neste momento em que se comemora o centenário do seu nascimento, deixo aqui o meu tributo a um homem excepcional que servi durante os primeiros tempos do seu exílio em Luanda.
Post Scriptum de António Louçã: Depois de devidamente autorizado pelo Artur Queiroz, acrescento a esta contribuição a memória de um episódio que em tempos me contou Ramiro Morgado, um antigo militante do PCP e operacional da ARA. RM, lapidador de diamantes na Dialap, fora detido pela PIDE e depois libertado no 25 de Abril. Voltou à fábrica e voltou à militância, com especiais responsabilidades na ligação ao sector militar (vindo depois a ter um papel muito importante na defesa do Ralis contra o golpe de 11 de março). O episódio em causa foi-me uma vez relatado, em termos vagos, porque Ramiro não recordava exactamente a sua localização cronológica. Alguém viera pedir-lhe que organizasse um grupo de operacionais com experiência “a pedido do Varela Gomes”. E ele assim fez.
Em conversa com o autor desta contribuição, rapidamente concluímos que o episódio era o mesmo. AQ recordava mesmo a intervenção de RM (falecido no ano passado), e relacionado com o irmão de AQ, Amado Silva, também ele operacional da ARA. Com algum tempo e alguma sorte, talvez se consiga reconstituir mais um pouco desta história que envolve revolucionários portugueses numa bem sucedida organização da autodefesa dos musseques, contra o terrorismo de milícias colonial-fascistas.