11 de Junho, 2024

Livreiro e editor

Varela Gomes, o franco-atirador

Por Eduardo Sousa

In memoriam de João Varela Gomes e Maria Eugénia

Quem conheceu o coronel Varela Gomes sabe que ele usava um endereço de correio electrónico com o nome «franco-atirador». Não terá sido por acaso que escolheu esse pseudónimo, pois conhecia bem essa função. Muitos lhe reconheciam também esse papel. Foi um homem que escolheu a liberdade, a autonomia, e os riscos de agir solitariamente contra o inimigo, sabendo que fazia parte de uma força mais ampla dos que lutam contra o capitalismo.

Como libertário à antiga, ou seja, como anarquista, não me identificava com muitas das suas posições políticas, o que para mim não chega a ser um problema pois reconheço o direito à diferença; mas uma coisa é certa, admirava-lhe a coragem, o destemor, a frontalidade, a honradez e a coerência. Qualidades pouco comuns na nossa paróquia e mais ainda entre os militares e revolucionários que viveram o PREC.

O seu destemor valeu-lhe, depois daquele final de ano de 1961, em Beja, a prisão e expulsão do Exército. Mais tarde, apesar da reintegração militar após o fim da ditadura, nunca lhe perdoaram a independência e coragem e o facto de ter sido revolucionário antes de Abril e de se ter atrevido a tentar derrubar a ditadura na hora certa, na década de 60. Com o 25 de Novembro de 1975, teve de se exilar, e no regresso não se calou. Nunca. Escreveu artigos e livros, bateu feio nos pais do regime, em Mário Soares e no PS, no homem da CIA, Carlucci, e seus apaniguados, nos militares do Grupo dos Nove, em Eanes e Otelo, o inconstante, nos trânsfugas e oportunistas esquerdalhos, como lhes chamava. Denunciou todos os golpistas, impostores e a «contra-revolução de fachada socialista». Tornou-se um dos poucos franco-atiradores da sua geração numa época de partidos e de homens partidos de que falava Drummond de Andrade no poema Nosso Tempo.

Foi assim que o conheci. Quando trabalhava na Ler Devagar, onde ele ia irregularmente, ouvia os seus comentários irónicos e sarcásticos sobre alguns militares de Abril que por lá andavam, como o inevitável Vasco Lourenço. Um dia ouvi-lhe uma tirada exemplar sobre um conhecido ex-revolucionário, Antunes, já então convertido aos negócios: «quando o vejo levo sempre a mão à pistola…». A sua definição da Revolução portuguesa como o “maior Cagaço que as classes dominantes tiveram em Portugal no século XX” ficou-me para sempre na memória como a melhor definição da nossa revolução impossível. Numa época de negócios florescentes, políticos corruptos, burocratas novos ricos, vivia modestamente com sua companheira Maria Eugénia no seu pequeno apartamento e andava de eléctrico. Está tudo dito.

Depois começou a visitar-me regularmente, já na Letra Livre, na Calçada do Combro de tantas memórias da luta social na Primeira República, já que aí esteve sediada a CGT e o jornal A Batalha, e acabámos por editar juntos, em 2011, a antologia de artigos «Memória Ideológica no Centenário da República» acalentando ainda outros projectos editoriais que ficaram pelo caminho.

O percurso contestatário e anti-fascista de Varela Gomes foi exemplar e os seus textos são do melhor que se escreveu sobre a Revolução Impossível; a «Contra-Revolução de Fachada Socialista», de 1981, continua a ser um documento único sobre o PREC, que agitou Portugal no final dos anos 70. Quando algum leitor de uma nova geração lê os seus livros não fica indiferente, descobre neles uma análise apaixonada, mas documentada, do tempo vivido pelo autor e, ao contrário do que acontece com os livros necrológicos e académicos sobre o 25 de Abril, logo percebe que as revoluções se fazem com paixão. E Varela Gomes foi certamente um homem que amou a Revolução.