25 de Maio, 2024
Elsa Sertório
Membro do Conselho de Redacção da Versus (1986-1988)
O nexo entre os pequenos detalhes e a grande causa
João Varela Gomes foi quem me tirou definitivamente da mente o “preconceito” contra os militares. A ideia de que um militar, oficial, só poderia ser um defensor incondicional da pátria, um obediente servidor do poder político instaurado, esvaiu-se quando conheci Varela Gomes, a sua história de vida e a sua actividade política na altura – no final dos anos 1980.
Era um militar de profissão perseguido por esse tal poder político que lhe exigia lealdade, tanto o do regime fascista dos anos sessenta, como o democrático do pós-25 de abril.
Quando, em 1986, integrei a revista Versus e o grupo Esquerda Revolucionária (ER) que a sustentava, Varela Gomes era um dos pilares do trabalho à volta desta revista. A lealdade que sempre lhe conheci, até ao fim da sua vida, foi para com o movimento revolucionário e para com os que lutavam para transformar o mundo.
Varela Gomes tinha aceitado fazer parte do conselho de redacção de uma revista quase desconhecida, fundada havia pouco tempo por um pequeno grupo de militantes trotskistas muitíssimo mais jovens do que ele. Assim como ele, Manuel Sertório, o meu pai, que tinha recusado anteriores convites para partilhar os postos restantes do novo poder instaurado, como o de embaixador num dos países dos Balcãs. Era surpreendente ver a aliança entre a ousadia desses jovens e a modéstia dos dois mais velhos, onde posso também incluir uma terceira figura, Jorge Amaro, um antigo operário metalúrgico, militante desde a sua adolescência. Os dois últimos faleceram cedo; Varela Gomes acompanhou-nos, na política e numa forte amizade, por mais três décadas e meia.
Nos 100 anos do seu nascimento, recordo em particular um episódio desses anos de convivência no seio da revista Versus, que não se limitavam, como vão ver, a reuniões de trabalho dentro de uma sala onde pairava o fumo espesso de cigarros e charutos.
A seguir ao estabelecimento de relações e intercâmbio com Lutte Ouvrière, fomos participar em 1987 na festa anual do partido francês. Partimos de Lisboa em dois carros cheios, onde iam entre outros João Varela Gomes e Carmo Vicente, numa longa viagem de vinte e poucas horas. A festa tem lugar no enorme parque verdejante de um antigo palácio da região parisiense. Há dezenas de fóruns de discussão, livraria, salas de cinema, gastronomia à imagem da diversidade regional e étnica do país e um parque de campismo. Foi naquele fim-de-semana chuvoso que montámos as seis tendas onde íamos passar três noites.
Varela Gomes encheu de público a grande tenda de circo, uma espécie de “salão nobre” da festa, onde falou num esplêndido francês sobre a revolução portuguesa. Foi uma das estrelas da festa daquele ano. De regresso a Lisboa, escreveu um extenso artigo no número 37 da Versus, onde descrevia com pormenores e entusiasmo a festa da Lutte Ouvrière, mostrando o seu interesse por aspectos tão diversos como as discussões políticas, a capacidade organizativa, os eventos culturais, não esquecendo de realçar a existência de uma creche e a água quente dos duches.
Numa vida norteada por uma grande causa revolucionária, não lhe escapavam os pequenos detalhes do dia, nem o nexo entre eles e o horizonte que sempre buscou, e nos ajudou a buscar.