24 de Maio, 2024

Militar de Abril

Era uma vez, no fascismo…

Por Luís Alves de Fraga

Entrei para a Academia Militar no dia 19 de Outubro de 1961, vindo do Instituto dos Pupilos do Exército. O primeiro período de aulas, para mim, não constituiu motivo de grande adaptação, pois já estava habituado ao regime militar havia sete anos, mas, para outros camaradas acabados de concluir o, então, chamado liceu, tudo era uma novidade e, nem sempre, boa. As academias militares servem para transformar jovens civis em oficiais dos quadros permanentes, o que não é fácil, quando a vocação castrense não é demasiado forte. As férias de Natal foram um alívio para todos nós, pois podíamos trajar à paisana, ir cada um para as suas terras e regressar aos ambientes habituais das suas juventudes. Eu fiquei em Lisboa de onde sou natural.

Não tenho a certeza, mas creio que já estávamos de férias quando se deu a invasão do Estado da Índia Portuguesa (18 de Dezembro). Ou talvez não, porque, recordo, um célebre e caricato episódio de um capitão, comandante de uma das companhias de cadetes, propor que Portugal comprasse uma bomba atómica aos Americanos e a lançasse sobre a capital da União Indiana! Enfim, nem tudo é perfeito à face da Terra…

Fosse como fosse, gozámos a nossa licença de Natal e de Ano Novo, contudo, por telegrama, fomos convocados para regressar ao aquartelamento da Academia Militar, na Amadora, no dia 2 de Janeiro de 1962.

Eu atribui essa antecipação, de imediato, à ocorrência do assalto ao quartel de Infantaria de Beja. E não me enganei. Durante a tentativa de controlo da situação foi morto a tiro, pela GNR, o subsecretário do Exército, o tenente-coronel Fonseca, pai de um cadete que frequentava o segundo ano. No Tribunal Plenário, a acusação tentou atribuir essa morte aos insurrectos, mas logo teve de render-se à evidência de que ela resultara de “fogo amigo”.

Se a memória não me falha, foi no dia 3 de Janeiro que, à tarde, depois do almoço, tocou a corneta para todo o batalhão entrar em formatura, na parada geral. Fiquei intrigado com o caso, mas, rapidamente percebi o motivo: o general-comandante da Academia Militar ‒ aquilo  que hoje é, tenente-general Humberto Buceta Martins, cujo irmão Amadeu era comandante da Região Militar do Sul, com sede em Évora ‒ ia falar aos cadetes.

Foi uma arenga inesquecível. De uniforme n.º 1 ‒ o comum para andar na rua ‒ botas altas e pingalim (ele era oriundo da arma de Cavalaria) com uma voz rouca, algo semelhante à do general Spínola, dá-nos uma lição de patriotismo, recordando o seu tempo de cadete, quando teve de defender os muros do aquartelamento de Gomes Freire, em Lisboa, por altura da revolução de 14 de Maio de 1915, “resistindo ao assalto de traidores à Pátria” que pretendiam derrubar o governo do general Pimenta de Castro (que havia mandado encerrar o parlamento para poder governar em ditadura e sem oposição, evitando a entrada de Portugal na Grande Guerra, satisfazendo o ignóbil pedido do Governo de Londres, colocando o nosso país na situação de não beligerante e, em simultâneo, de não neutral).

Foi teatral o apelo do general Buceta Martins com a agravante de, na altura, a esmagadora maioria dos cadetes desconhecer o que havia sido a revolução de 14 de Maio, mas, inesquecível mesmo foi quando ele relatou a conversa que havia tido ao telefone com o irmão, na madrugada de 1 de Janeiro de 1962. A frase ficou gravada a ferro e fogo na mente de quem a ouviu, porque traduzia a mentalidade dos generais fascistas e salazaristas da época. De pingalim erguido e voz alterada, disse-nos ele que gritara ao irmão, responsável pela repressão do assalto ao quartel de Beja: “À bruta, Amadeu, à bruta!”

Não sei o efeito que teve nos mais de quatrocentos cadetes em formatura, todavia, duas coisas são certas: eu fiquei esclarecido de como pensavam os generais salazaristas e entre nós passou a ser motivo de chacota a frase À bruta, Amadeu, à bruta.

Foi neste contexto que ouvi, pela primeira vez, o nome do capitão Varela Gomes. Sobre ele toda a brutalidade do regime fascista e salazarista havia caído, pondo-o às portas da morte. Conheci-o pessoalmente já só no começo do século XXI e percebi que o desgaste dos anos havia mantido intactos a Força e a Verticalidade do Homem que o fascismo quisera matar.

Almada, 24 de Maio de 2024