22 de Maio, 2024

Militar de Abril

Varela Gomes e os militares injustiçados - Que outros triunfem onde nós fomos vencidos!

Por Manuel Duran Clemente

Chegados ao 25 de Abril de 1974, João Varela Gomes foi reintegrado no Exército com posto de Coronel. Mas a história de vida de um cidadão como Varela Gomes, homem e militar feito de frontalidade e empenho na acção, de coragem, de honestidade intelectual e de dignidade de carácter, de não quebrar, nem torcer, não fica por aqui. As experiências que vivera e as lutas antifascistas que travara proclamaram — a incitação à Revolta — que os jovens capitães de Abril ouviram e apreenderam como “Sementes do nosso Abril, germinando cravos, Revolução”.

Nos primeiros dias de Liberdade recebeu ordens por escrito, de Rosa Coutinho, para coordenar o esmantelamento da Legião Portuguesa. Mas nem começou a missão. O farisaico, membro da Junta de Salvação Nacional, Jaime Silvério Marques, mandou-o prender!!!

Começavam assim as contradições no seio do MFA. Ainda fez o passeio até ao Forte da Trafaria, mas a prisão não se consumou. Os capitães actuaram prontamente, e Dinis de Almeida foi buscá-lo. Libertou-o da humilhação!

(Ver biografia de Varela Gomes de António Louçã, em Varela Gomes: “Que outros triunfem onde nós fomos vencidos”, Lisboa, Parsifal, 2016.)

Em Junho foi então criada, na chefia do Estado Maior General das Forças Armadas (EMGFA), a 5.ª Divisão, com o objectivo imediato de integrar os sete oficiais que constituíam a 1.ª Comissão Coordenadora do Programa do MFA. Vasco Gonçalves foi o primeiro Chefe (por apenas um mês), por tomar posse como 1.º ministro do II Governo Provisório a 18 de Julho. No EMGFA o Coronel Varela Gomes transitou para esta nova 5.ª Divisão. Como oficial de maior patente assumiu, entre Julho e Outubro “oficiosamente”, a chefia desta Divisão, seguindo-se-lhe o Coronel Robin de Andrade e, mais tarde, o Comandante Ramiro Correia, que desde Outubro de 1974, já na 5.ª Divisão, coordenou e impulsionou as Campanhas de Dinamização Cultural e Esclarecimento Cívico do MFA.

Nos 14 meses de permanência nesta estrutura, a acção de Varela Gomes adquiriu particular relevância, não só no período em que “chefiou” a 5.ª Divisão, na organização e coordenação dos seus diversos sectores, como posteriormente (enquanto segunda figura hierárquica), imprimindo na sua actuação a marca do militar “intransigente na defesa dos ideais de Abril e na defesa da Revolução”.

Alguns de nós tivemos o privilégio de testemunhar e desfrutar da sua pujança e do seu dinamismo. Sempre presente, no seu “posto de missão”, enfrentou os momentos mais sensíveis do período revolucionário, e a sua intervenção na 5.ª Divisão revelou-se essencial.

Intransigente na defesa de Abril, contra todos os inimigos possíveis: no 28 de Setembro de 1974, no 11 de Março de 1975, no chamado “Verão Quente”, e no 25 de Novembro de 1975.

Por isso, importa recordar e destacar as palavras que João Varela Gomes deixou inscritas no preâmbulo do Livro Branco da 5.ª Divisão, editado em 1984:

(…) a 5.ª Divisão foi um autêntico órgão revolucionário.

(…) O mérito que porventura houve foi o de, observando o fluir do movimento popular, tentar assegurá-lo, defendê-lo, integrá-lo ao nível do poder militar. (…)

(…) militares de carreira ou em serviço temporário; sargentos, soldados e marinheiros; funcionários civis; trabalhadores voluntários; intelectuais e artistas; dedicações sem número; foram centenas, mais de mil, quantos fizeram a 5.ªDivisão e contribuíram para lhe moldar a sua singular feição revolucionária… resoluta, como marcha para o combate. (…)

(…) em igual medida, as centrais de desestabilização imperialistas nos distinguiram como alvo a destruir. Prioritário. O mais perigoso. Essa distinção a assumimos. Como título de honra. De tão elevada quota no quadro dos valores revolucionários que, em sincera modéstia, a achamos imerecida. (…)

(…) Sabemos como as Revoluções — com Povo nas ruas e trabalhadores reivindicativos, impulsionados pela Esperança renascida num futuro melhor, são insuportáveis e intoleráveis para a burguesia e as elites acomodadas, sedentas de poder, que logo se apressam a considerá-las como a desordem na rua, a populaça efusiva, o desvario… por sentirem ameaçados os seus haveres e privilégios. (…)

Os 500 dias do período revolucionário, tão caluniados, foram os dias mais belos, luminosos e ricos da nossa história recente.

Que Varela Gomes ratificou orgulhosamente nos seus escritos:

(…) a gloriosa Revolução dos Cravos … é nossa, é de esquerda, é do povo trabalhador, das pessoas decentes, honestas, cultas. Luta por um melhor futuro para os desfavorecidos, por nascimento ou condição social. Não tem quaisquer afinidades com as minorias exploradoras, nem com os desfrutadores de privilégios abusivos, nem com fascistas ou filofascistas.

(…) Mas não deixa de ser curioso que até uma «troika», no final de 1975, tenha lavrado um relatório (agora perdido!?) declarando o estado de boa saúde económico/ financeira de Portugal. (…)

Paradoxalmente, ou não, esse período contém em si toda a dialéctica reaccionária da contra-revolução. Varela Gomes apercebeu-se disso muito cedo e daí o seu combate, na tentativa de evitar que esta singrasse. Infelizmente a contra-revolução venceu. Terá começado, tímida, travestida, mas rapidamente se passeou engalanada e arrogante.

 Os vencedores do 25 de Novembro apressaram-se a emitir mandados de captura ao coronel Varela Gomes e a outros militares para que se entregassem, nos quais instigavam a própria população à denúncia.

 Mas que crimes cometeram estes militares?

O verdadeiro crime, foi cometido pelos fazedores de Novembro, contra a nossa Primavera de Abril. Um crime planeado, ordenado e executado contra a Revolução. Não foi um golpe contra um golpe, como lhes apraz justificar. Foi um golpe contra-revolucionário, concretizado pelos que, se deixaram seduzir com maior ou menos grau de percepção, pelo aparente sossego de uma ilusória tranquilidade de um regime democrático “doente”, em que o Povo não fosse quem mais ordenava.

 Seguindo os ditames das suas consciências, Varela Gomes e os outros militares injustiçados não se entregaram nem se submeteram ao livre-arbítrio dos vencedores; senhores do novo poder. E tornam–se exilados políticos, da democracia de Abril. Na vida de cada um iniciou-se uma nova etapa, dura e incerta. O lutador Varela Gomes (acompanhado de Maria Eugénia) exilou-se quatro anos em Angola, onde teve a desventura de assistir à injusta prisão do saudoso e inocente, camarada e companheiro, Costa Martins. Depois, em Moçambique, confronta-se com a trágica morte (por acidente) do não menos saudoso, camarada e companheiro, Ramiro Correia, juntamente com sua mulher e um dos filhos.

E, assim, subitamente, “Na Clivagem do Tempo” (utilizando o título do livro de Ramiro Correia, 1973), em cenário de tragédia antiquíssima, solene e tremenda… jamais a emoção deixou o entendimento esquecer.

Em 1979 regressou a Portugal e nunca foi julgado, não obstante ter-lhe sido aplicada, e a outros militares, a pena, administrativa e ilegal, de passagem ao quadro de complemento (a miliciano?!).

 O Tribunal Superior Administrativo demorou cinco anos a anular semelhante aberração. E, nos entretantos de peripécias grotescas, foi integrado em 1982 como Coronel, Reformado!

Camarada, companheiro, comandante João Varela Gomes.

Querido Amigo.

 Nasceste a 24 de Maio de 1924, viveste uma vida cheia de anos e repleta de experiências e visões de futuro. Citando alguém que um dia te fez justiça, reafirmo que foi “uma vida que escolheu o caminho da coragem e da dignidade, ontem contra o fascismo, hoje contra a quietude endémica, a indiferença e o cepticismo político e ideológico de uma democracia que não hesitaste em chamar Filofascista. Com uma independência e uma frontalidade a toda a prova, continuaste o combate solitário, quase quixotesco, através de textos livres, indignados, provocatórios, que teimaram em furar o cordão sanitário do politicamente correcto, da aceitação passiva de que não há alternativa.

Em jeito de homenagem recordo um dos grandes “Mitos do Séc. XX”: A Democracia. Mito que remonta à cidade de Atenas, com mais 2500 anos. Mito ressuscitado no séc. XVIII da era cristã, pela emergente classe burguesa.

Os amigos de Péricles ressurrectos: “les gens de bien,”

gente que tinha alguma coisa a perder. Mito orientador dos ideais da Revolução Francesa, consubstanciado na Constituição dos EUA de 1777 e no poder político exercido pela burguesia de então. Assim, sim, exclamaram os crédulos. Agora acabaram os abusos e privilégios da nobreza e do clero, o poder será legitimado pelo povo em eleições, os mais aptos, ilustrados e honestos desempenharão os cargos públicos que nunca mais serão ocupados por favoritismo, razões de riqueza ou nascimento. Liberdade, Igualdade, Fraternidade.

O mundo civilizado, convertido numa grande, feliz e próspera Atenas. Em Portugal, o mito da democracia também foi fruto de cada época. Inicialmente plasmado na Constituição de 1820, na vitória liberal, iluminou os sonhos dos antifascistas do séc. XX, durante os anos obscuros e salazarentos da ditadura. O 25 de Abril chegou e foi tomado de assalto por Soares, seus pares e outros exemplares.

 A desilusão foi cruel.

 Pelo mundo fora o sistema democrático está em crise ou ameaçado de morte. Os fazedores de opinião citam Churchill (ou lá quem for):

“A democracia é o pior dos regimes, à excepção de todos os outros”.

E assim vão tranquilizando as consciências com doses de demagogia, entorses, falsas promessas de socorrer os pobres e desfavorecidos. Uma rábula infinita e desacreditada, que conduz o eleitorado a abster-se de votar. O modelo democrático, tal como está implantado no designado “mundo ocidental”, bastião da Liberdade, vai sendo imposto aos países menos desenvolvidos por meio de uma máquina bem oleada (lubrificada a dinheiro), ao serviço do poder absoluto da burguesia capitalista. O funcionamento do sistema tende a degradar-se com a ferrugem, isto é, a corrupção a todos os níveis. O modelo está esgotado, dizem uns.

Está apodrecido, diz a voz do povo. Mas não está, dizem eles. “Bastam umas reformazinhas, um rendimento mínimo, um torneio de futebol. Dêem-nos ideias, dêem-nos ideias”, escreveu Varela Gomes.

Perante a falência da ordem global de hegemonia americana (ocidental), o sistema submeteu-se ao 4.º poder: a comunicação social.

Que engloba os modernos veículos de difusão tecnológica, redes sociais, etc. Neste contexto, os grandes capitalistas apoderaram-se dos meios de comunicação à escala planetária. Mas a comunicação não é apenas transmissão, é também recepção e resposta. Como salientou Raymond Williams, os governos tentam implantar as “ideias certas” na cabeça dos governados, mas estas são o resultado das suas experiências. “A aldeia global vem a revelar o mesmo espírito que a aldeia paroquial. A imprensa livre, a expressão independente da opinião, fica relegada para uma situação de semiclandestinidade. O quarto poder está escravizado pelo poder capitalista. Mais um mito que se esvai”, escreveu João Varela Gomes na obra “Esta Democracia Filofascista.”

 Escrever foi a última arma de arremesso do lutador que nunca se rendeu, publicando livros e artigos, divulgando, esclarecendo, desmascarando, vincando as suas imorredouras características cáusticas, de um tenaz e sério combatente da liberdade. Efectivamente a contra–revolução, de braço dado com o sistema neoliberal global, entrou nas nossas vidas como um vírus, e foi disseminado no propósito de destruir as conquistas de Abril, as Conquistas da Revolução…

Estupefactos, interrogamo-nos: “— Como foi possível isto?”

E, cinquenta anos depois, impõe-se desfazer o equívoco/mistificação criado na farsa cerimonial e oficial das comemorações e homenagens ao 25 de Abril.

 Mas qual 25 de Abril? Aquele que foi destruído… pela raiva contra-revolucionária a 25 Novembro 1975?

 Obrigado, João Varela Gomes, pelo teu exemplo e legado que inspira e revigora a nossa coragem em prosseguir a Luta. A luta do presente, que os trabalhadores, a juventude, as mulheres e os homens de Abril vão continuar a travar contra os que pretendem restaurar um novo modelo do tenebroso passado. Sabemos como, na tua vida, te marcou o AMOR na acção, criação e perda. Mas nessas lutas — com derrotas e vitórias — foste sempre de corpo inteiro. É aí que, na nossa memória, tu, Amigo João, ascendeste à eternidade e à imortalidade.

Na memória dos teus queridos amigos e camaradas, na memória das tuas acções e da tua obra, no desempenho pelo cimentar do nosso Abril da Liberdade.