21 de Maio, 2024

Militar de Abril

Varela Gomes: Indómito e esclarecido Revolucionário

Por Mário Tomé

Quando o capitão João Varela Gomes foi ferido gravemente durante a operação de assalto ao quartel de Beja na passagem do ano de 1961 eu era um cadete finalista da Academia Militar. E a notícia que me chegou foi a de que tinha morrido o Secretário de Estado do Exército pai de um cadete nosso camarada. As circunstâncias dessa morte estariam ligadas a um ataque ao quartel de Beja.

Lembro-me de que a notícia do ataque foi recebida pela “malta” sem qualquer emoção, apenas simples curiosidade pela morte do secretário de Estado: o que é que o gajo estava lá a fazer?

Varela Gomes era um desconhecido para mim: embora por esses tempos a minha “sã” curiosidade  levasse a envolver-me com a Biblioteca Cosmos de Bento de Jesus Caraça e, à distância, com a campanha do General Humberto Delgado; o mais próximo que estive foi pelo voto e, num relance, ouvindo o Urbano Tavares Rodrigues na mesa do lado, na Estudantina (pastelaria onde a malta ia apaisanar-se para as surtidas civilizatórias) relatar as circunstâncias em que fora barbaramente espancado à saída de um comício de apoio ao General.

Quis a sorte que viesse a casar em 1965 com a Graça, filha de brigadeiro, sobrinha de brigadeiro e sobrinha de general, todos eles oriundos da arma de cavalaria, marcados pela sua participação na tentativa de golpe do Botelho Moniz, e ainda sobrinha do capitão Arruda de Administração militar que passou a carreira a ser preso em unidades militares e casas de reclusão, sendo uma delas nos Açores, pela sua participação sistemática no movimento reviralhista. Foi, portanto, aí que pela primeira vez ouvi falar com admiração do general Sousa Dias e do golpe reviralhista de 1927 e do capitão Varela Gomes, do assalto em Beja em 1961.

Daqui, portanto, manifesto o meu profundo respeito por tantos militares que se bateram contra o fascismo em condições que lhes poderiam acarretar a prisão, a tortura, custar a vida. Como Varela Gomes que a partir da sua coragem revolucionária nunca se esqueceu de exaltar sinceramente o 25 de Abril em que não pôde participar directamente por estar expulso do Exército, no seguimento da derrota da operação de assalto ao quartel de Beja.

Mas foi ele o primeiro capitão de Abril.

Os militares de carreira que se moviam na área da luta antifascista eram em número relativamente reduzido (não me refiro aos de ideais antifascistas que seriam muitíssimos mais) mas assinalável, especialmente oficiais; tinham uma referência de luta e uma garantia de apoio, mesmo que apenas virtual, na organização clandestina do PCP. Daí não ser de estranhar a simpatia que os aproximou quando o 25 de Abril rebentou com as comportas da repressão. Lembro-me de amigos bem mais graduados como Vicente da Silva que durante o PREC foi director da Arma de Cavalaria, de Mire Dores que foi Chefe de Gabinete do Kaúlza, quando eu era o ajudante de Campo em vésperas do lançamento do Movimento dos Capitães.

E, muito particularmente, lembro o General Pinto Ferreira, comandante da GNR que teve um comportamento de uma firmeza exemplar em defesa da revolução durante o golpe spinolista do 11 de Março de 1975. Pinto Ferreira, ainda coronel em Moçambique, teve um papel importante aquando das manifestações da Beira, em Janeiro de 1974, em que, resumindo, os colonos insultavam as Forças Armadas exigindo que estas matassem mais e mais depressa.

Os colonos que, depois do 25 de Abril, se queixaram do tratamento recebido pelas forças de libertação nacional, decerto não tinham em mente os procedimentos canónicos que em turbamulta levavam a cabo, como a chacina nos bairros populares de Lourenço Marques no decorrer do assalto integrado nos planos de Spínola para impedir o cumprimento do Programa do MFA de reconhecimento da independência das colónias ao Radio Clube de Moçambique em 9 de Setembro de 1974, também frustrado pela acção militar do Movimento dos Capitães. O grande jornalista Ribeiro Cardoso que recentemente nos deixou e que era o representante, como alferes miliciano, do Movimento dos Capitães naquela estação emissora, no seu livro «O Fim do Império» não deixa dúvidas sobre aquela movimentação racista e colonialista.

O apelo à Maioria Silenciosa estava articulado com o assalto referido atrás.

Não satisfeito, Spínola planeou e mandou executar o ataque ao RALIS em 11 de Março de 1975, em que foi morto o soldado Luís. É minha convicção que o ataque integrava uma estratégia de pronunciamento a partir do quartel “conquistado” a que adeririam outras unidades militares, previamente aliciados os seus comandantes e outros oficiais. Foi isso que aconteceu nomeadamente em Cavalaria 7, onde eu era o delegado à Assembleia do MFA e frustrei a possível adesão ao golpe se o assalto ao RALIS se tivesse tido êxito.

De notar que quer eu próprio quer outros camaradas delegados à Assembleia do MFA, como Cuco Rosa, Cabral e Silva, estávamos no Liceu Gil Vicente para onde tínhamos sido desviados por orientação emanada do COPCON para … ajudar a resolver uma greve de alunos!!!

Tínhamos acabado de explicar a pais e professores que tinha havido um 25 de Abril e que os alunos também tinham direito ao protesto e à greve, quando um deles, de rádio transístor no ouvido, irrompeu pelo recinto gritando “estão a atacar o RALIS”. Arrancámos de imediato cada um para a sua unidade.

Essa acção golpista foi derrotada, como se sabe, pela acção firme, dissuasora e inteligente de Dinis de Almeida e do Comandante Costa Correia junto do comandante dos paraquedistas “assaltantes”.

O golpismo e o ambiente preparatório das acções terroristas, que vieram a pôr “Portugal a Arder», referindo-me ao importante livro de Miguel Carvalho, e preparação do próprio 25 de Novembro com contactos de elementos do Conselho da Revolução com os bombistas, hoje na Presidência da Assembleia da República, tinham a sua maior, para não dizer a única, contenção no movimento popular e dos soldados e, do ponto de vista institucional, na 5ª Divisão dirigida efectivamente por Varela Gomes.

Tal provocou uma permanente fricção desta com a Comissão Coordenadora e, depois do 11 de março, com o Conselho da Revolução.

Durante o PREC e até ser afastado já como acto de preparação do 25 de Novembro, Varela Gomes, na direcção da 5ª Divisão do Estado Maior General das Forças Armadas que publicava um jornal/boletim, era o mais credenciado e capacitado oficial para orientar a liquidação do fascismo, que nunca se realizou efectivamente.

Será altura de relembrar que o golpe dos capitães do 25 de Abril tinha como objectivo estratégico o fim da guerra colonial pelo reconhecimento explícito do direito das colónias à independência. O derrube do regime fascista foi um objectivo intermédio e, como veio a verificar-se, disso resultou a pouca eficácia e pertinência da retórica e da acção antifascistas que marcaram todo o processo revolucionário no que às instituições abrilistas disse respeito.

A propósito lembro que a única acção pública devidamente estruturada e organizada com o  objectivo de condenação do fascismo e da PIDE  – o julgamento e condenação dos pides, que não da PIDE enquanto organização terrorista, não passou de um arremedo –  foi um tribunal de opinião, o Tribunal Cívico Humberto Delgado, instalado em 27 de Maio de 1977, dinamizado pela Associação de Ex-Presos Políticos Antifascistas, AEPPA, organização cívica ligada à UDP, sob a coordenação de José Mário Costa e integrando José Augusto Rocha, Jerónimo Martins, Saul Nunes entre  outros.

Esta iniciativa, teve como base a recolha de depoimentos que funcionaram como produção de testemunho. O arco de aderentes foi muito amplo contando com personalidades como Sophia de Mello Breyner, Alcina Bastos (ex-secretária do General), Luísa Irene Dias Amado, o coronel “reviralhista” Carlos Vilhena, Carlos Cal Brandão e António Macedo, Carlos Candal, Paulo Quintela, Jorge Sampaio, Orlando de Carvalho, Ruy Luís Gomes, Adelino Gomes, Nuno Teotónio Pereira, Frei Bento Domingues, José Mário Branco, Jorge Fagundes, Saldanha Sanches, Emídio Santana, José Augusto Rocha, Jerónimo Martins, Mário Brochado Coelho,

A Varela Gomes, o seu currículo de lutador antifascista e militante revolucionário que confrontou o fascismo de armas na mão e pelo seu posicionamento em confronto radical com a sornice colaboracionista “abrilista”, tornavam-no um dos elementos mais íntegros e radicais da plêiade de militares revolucionários. Estava, aliás, rodeado, na direcção da 5ª Divisão, por uma equipa de excelência na luta ideológica e política contra as raízes persistentes do fascismo.

A importante iniciativa das Campanhas de Dinamização Cultural apoiadas pelo Boletim Informativo do MFA foi das mais importantes realizações para lançar as bases de uma plena participação cívica e de acção revolucionária no sentido de estruturar uma sociedade em que a iniciativa popular fosse a garantia da própria democracia representativa e esta só tivesse validade se apoiada estritamente naquela. A que se chamaria por antecipação socialismo. Sabendo-se, de antemão, que os dei ex-machina, naqueles tempos da guerra fria, hoje quase invejáveis, odiavam, uns desde sempre, outro mais recentemente, o socialismo. Como hoje!

Daí que a necessária influência da esquerda no MFA tendesse para soluções em que a verdadeira participação popular fosse desviada para o controlo organizado do MFA que se materializou no «Plano Unidade Povo-MFA» subscrito pelo MFA, o PS, o PCP e o MDP-CDE. A UDP, partido constituinte, não alinhou na conversa.

Era, pois, escopo difícil de alcançar como se verifica por todo o lado e ainda mais difícil quando se conta como coluna vertebral com as Forças Armadas de súbito transformadas em garantia revolucionária do socialismo.

Em todo o caso, tratava-se de dar o melhor seguimento possível, dadas as condições dum case study em ebulição. E que tinha despertado o entusiasmo curioso de todas as forças progressistas e revolucionárias nas suas lutas contra o imperialismo e a repressão burguesa do capital.

Por cá foi-se finando a revolução, mesmo a possível, depois de uma triste entrega aos patos bravos, aos pavões e aos abutres. O nosso bestiário!

O 25 de Novembro que obrigou o povo a ficar em casa, deu projecção a figuras sinistras como o herói do regime Jaime Neves e o vice-rei do Norte Pires Veloso, responsável, enquanto comandante militar do Norte, pelo alastrar impune do bombismo e responsável, com Spínola e Alpoim Calvão, pelo assassinato do Padre Max e da jovem estudante Maria de Lurdes entre muitas outras vítimas mortais. No seguimento da prisão de militares revolucionários em Custóias, Pires Veloso foi ainda responsável, enquanto comandante da Região Militar Norte, por duas tentativas de liquidação de prisioneiros como tive oportunidade de denunciar e relatar em artigos do Esquerda.net https://www.esquerda.net/opiniao/se-memoria-existe/33828

Esta a índole de alguns dos incensados promotores do 25 de novembro, que a delicodoce democracia do Conselho da Revolução impediu que fosse radicalmente combatida, como propugnou Varela Gomes.

Mas o nosso capitão de Abril, Varela Gomes, deixou-nos uma proposta eterna: que outros triunfem onde nós fomos vencidos.

João Varela Gomes onde esteve mais próximo da vitória não foi durante a revolução de Abril.

Foi no já bem distante ano de 1961, na passagem para 1962.

Numa sessão que houve, com casa cheia, no Museu da República e Resistência, dirigido pelo saudoso João Mário Mascarenhas, com quem tive o prazer de trabalhar na Assembleia da República nos idos de setenta/oitenta, comemorava-se, creio eu, o assalto ao quartel de Beja.

Pela enésima vez surge a opinião de que fora uma heróica iniciativa condenada ao fracasso, marcada pelo aventureirismo revolucionário.

Aí, Varela Gomes, já com os seus 83 ou 84 anos deixou claro o seu repúdio por essa opinião sublinhando o acerto da decisão de Manuel Serra e dele próprio, acompanhados pelos outros camaradas.

De facto, qual era a situação?

O povo português tinha infligido uma estrondosa derrota política ao regime fascista, que só a falsificação dos resultados eleitorais impediu de ser efectiva.

O movimento de libertação colonial tinha iniciado a sua luta armada com o assalto à cadeia de Luanda em 4 de Fevereiro desse ano de 1961 (Na verdade o primeiro acto que levou ao 25 de abril)

Acções de grande impacto como a tomada do Santa Maria e o desvio do avião da TAP e lançamento de panfletos sobre Lisboa tinham, durante o ano de 1961, alvoroçado o povo e despertado de novo a esperança de 1958.

A tentativa de golpe de Botelho Moniz, a «Abrilada» de 1961), apesar de fracassada por falta do devido sigilo (Kaúlza soube e denunciou-o) e por falta de audácia no enfrentamento directo de Salazar, mostrara que os principais comandantes militares – General Meira e Cruz, comandante da Região Militar de Tomar; Brigadeiro Gomes Júnior, comandante do Campo Militar de Santa Margarida onde se encontrava a principal força blindada; e a GNR através do seu segundo comandante Brigadeiro João Baptista, estavam predispostos a apoiar uma acção com pés e cabeça.

E era esse o caso, pois o real vencedor das eleições estava no comando, pronto a fazer o seu pronunciamento a partir do quartel de Infantaria de Beja, tomado e ocupado. (era esse, como já referi, o modelo universal que Spínola queria seguir para o golpe reaccionário de 11 de Março de 1975).

Por fim, a “Europa”, que, no rescaldo da derrota da Alemanha nazi, fora incapaz de apoiar o movimento democrático português suspeito da influência do PCP, tinha no General Humberto Delgado um homem de confiança.

O aeroporto das Lajes foi construído sob a supervisão do General Humberto Delgado, que teve um papel decisivo para colocar a base ao serviço dos aliados, depois de muitas hesitações de Salazar quanto à colaboração com os ingleses na defesa do Atlântico Norte contra os ataques dos submarinos nazis.

Antes, em 1944, foi construído pelas Forças Armadas norte-americanas um aeródromo na ilha de Santa Maria, servindo de plataforma de passagem de tropas.

Humberto Delgado era, portanto, um “homem dos americanos”, portanto dos europeus. Era o homem ideal para o papel que lhe fora proposto e que aceitou assumir com todas as possibilidades de protagonizar a derrota do fascismo em Portugal quando a tendência geral ainda se mantinha sob a aura da derrota do nazi-fascismo. Além disso, “contradições que o império tece”, os EUA estavam interessados em garantir posição em África, que Salazar dificultava.

Foram pois compreensíveis, do ponto de vista dos interesses soviéticos, as hesitações do PCP no apoio a Delgado. Mas o derrube do fascismo passava por aí e pela acção de Beja.

O imponderável impediu que se tivesse evitado a criminosa guerra colonial.

Mas isso não impede que se reconheçam as virtudes do plano e a magnífica entrega dos revolucionários à luta

João Varela Gomes e todos aqueles que planearam, decidiram e executaram a maior e verdadeira acção contra o fascismo, só comparável ao 25 de Abril, mas que exigiu um grau de entrega e de heroísmo muito superiores (os capitães tinham as armas e as tropas que faltavam aos heróis de Beja), só não tiveram o devido reconhecimento graças à mesquinhez reaccionária que se apossou da pequena burguesia antifascista e ao sectarismo que caracterizou a política da esquerda portuguesa.

Sectarismo que não teve lugar naquele grupo de heróis cujo único objectivo era derrubar o fascismo e, consequentemente, evitar a guerra colonial.

Varela Gomes permaneceu e manteve até ao fim a sua entrega à luta, o seu espírito intimorato, a sua radical confrontação com o fascismo sustentada na esperança do socialismo e o seu saudável e radical desprezo pelos rastejantes fantoches que preenchem os espaços vazios que o imperialismo e o capital lhes atribuem.

Passados cem anos do seu nascimento aqui fica o meu modesto agradecimento por tudo o que deu à luta do povo português e pelo muito que, por minha parte, dele recebi.

E não quero terminar sem um cumprimento comovido à mulher que com ele lutou corajosamente, toda uma vida, pelos mesmos ideais, Maria Eugénia Varela Gomes.