21 de Maio, 2024

Editor da revista Versus (1983-1988)

João Varela Gomes e a escala de Brecht

Por António Louçã

Os fracos não lutam. Os fortes lutam talvez durante uma hora. Os que ainda são mais fortes lutam durante vários anos. Mas os mais fortes lutam durante toda a vida. Esses são imprescindíveis.

Bertolt Brecht

 

No lapso de um mês, cumprem-se 50 anos do 25 de Abril e, agora, 100 anos do nascimento de João Varela Gomes. Entre os ecos da primeira comemoração passa, naturalmente, despercebida a segunda. Mas a primeira comemoração tem-se limitado a uma superficial hagiografia dos capitães de Abril e a uma diabolização das forças sociais que quiseram levar mais longe a revolução. Se não quisermos ficar-nos por esse discurso oficial, o centenário de Varela Gomes é uma ocasião imperdível para evocar uma luta iniciada antes do 25 de Abril e prolongada muito para lá do 25 de Novembro.

Nascido em 24 de maio de 1924, João Varela Gomes parecia destinado a uma brilhante carreira militar. Mas em 1948 partiu para uma comissão em Goa e o seu espírito crítico logo chocou com as realidades do colonialismo. Em 1956 foi nomeado para o curso do Estado-Maior, destacou-se no primeiro ano pela sua invulgar capacidade e cultura, mas logo recusou as oportunidades proporcionadas por essa carreira. Estado-Maior era, para ele, sinónimo de “intriga palaciana”.

 

A vaga delgadista e a Revolta de Beja

 

O início da campanha eleitoral de Humberto Delgado foi encontrar Varela Gomes como capitão em Santa Margarida, próximo de Tomar. As grandes manifestações de 14 e 16 de maio de 1958, no Porto e em Lisboa, tiveram impacto em todo o país e encorajaram-no a intensificar a agitação entre os seus contactos militares. As manifestações da campanha, e depois, a partir de 8 de junho, a vaga de greves espontâneas contra a fraude eleitoral criaram, como Álvaro Cunhal viria a admitir, “uma situação pré-insurreccional” que o PCP não soube conduzir à vitória.

A frustração das expectativas de 1958 deixava sobre a mesa o dilema de continuar a aproveitar as margens de acção legal cada vez mais estreitas, ou de conspirar com vista a uma saída putschista. Nos três anos seguintes, Varela Gomes participou pacientemente na actividade conspirativa que fervilhava nas Forças Armadas, mas parece tê-lo feito sempre com o intuito de acumular forças que pudessem intervir em condições mais propícias. Não tratou nunca de precipitar uma acção militar e, em discussão com Humberto Delgado, fez mesmo contravapor à atitude urgentista do general.

Nos três anos de ressaca da vaga delgadista de 1958, o impulso mais notório de Varela Gomes foi o de retomar a agitação de massas, aproveitando as mais pequenas brechas que lhe permitissem agir à luz do dia. Esse impulso manifestou-se principalmente no final de 1961. A guerra de libertação tinha começado em Angola e o ambiente político em Portugal era de fortaleza sitiada. A oposição, enfraquecida por uma vaga de prisões, ia concorrer às eleições legislativas com as últimas margens de luta legal a serem drasticamente cerceadas.

Nos últimos meses de 1961, Delgado já se encontrava no exílio e o calendário determinava a realização de mais uma farsa eleitoral para a Assembleia Nacional. Varela Gomes aceitou a candidatura nas listas da oposição, tornando-se rapidamente o grande agitador da campanha e a principal figura pública da oposição. Percorreu cidades e vilas, segundo havia de recordar mais tarde Maria Eugénia, a companheira da sua vida, discursando “às vezes em barracões, em cima de um carro ou de uma camioneta”. A imprensa fascista não se enganou e rapidamente o escolheu, entre os 86 candidatos oposicionistas, como alvo dilecto das suas tiradas mais vitriólicas. Mesmo a disciplinada militância do PCP se sentiu atraída pelo estilo enérgico deste pós-delgadismo, mais jovem, desassombrado e radical.

Mas, a pretexto da guerra, o regime cerrava fileiras, silenciava dissidências e matizes, aliciava os republicanos mais nacionalistas. Dez dias antes da votação, a imprensa fascista já dizia despudoradamente que o partido único tinha uma maioria absoluta garantida na Assembleia Nacional. Em 12 de novembro a oposição decidiu boicotar as eleições. Nas semanas seguintes, a escalada repressiva custou a vida ao operário comunista Cândido Capilé, abatido durante uma manifestação, e ao funcionário comunista José Dias Coelho, assassinado pela PIDE em 19 de dezembro.

Quando Manuel Serra chegou a Portugal com ordens de Humberto Delgado para iniciar um movimento revolucionário antes do fim desse ano, Varela Gomes tratou de dissuadi-lo de um plano que considerava irrealista. Ele próprio se encontrava sob cerrada marcação da PIDE e sob uma pressão acrescida da hierarquia do Exército que o intimava a oferecer-se como voluntário para a guerra, se quisesse fazer esquecer o seu papel na campanha eleitoral. Ainda assim, Varela Gomes aceitou discutir com Manuel Serra o plano deste para a tomada do RI 3, em Beja.

Para o efeito, tinha Serra organizado largas dezenas de civis, em grande parte operários da margem sul ou do Bairro da Liberdade, em Lisboa. Mas a preparação deixava a desejar: os insurrectos quase não tinham armas e dependiam das que conseguissem no assalto ao quartel. Na sua maioria, mal sabiam manejá-las. Varela Gomes começou por negar-se a uma iniciativa em que via pouco realismo e muita diletância. Na discussão que se foi desenvolvendo, Serra ameaçou a certa altura avançar com os civis, sem a participação de Varela Gomes, sujeitando-os todos ao que poderia ser um derramamento de sangue infrutífero.

Neste impasse, surgiu José Hipólito Santos, do grupo “Seara Nova”, informando Varela Gomes sobre a disponibilidade de oficiais do RI 3 para agirem sob as ordens deste. Mais tarde, Varela Gomes viria sempre a apontar a revelação da disponibilidade de três oficiais da unidade como o “clic” que o decidiu a assumir a direcção operacional da revolta. Mas podemos admitir que a quase-chantagem de Serra tenha calado fundo no seu espírito e o tenha feito procurar um pretexto para arriscar tudo numa iniciativa com escassíssimas possibilidades de êxito, como ele próprio intuíra. Na verdade, o pretexto era frágil e os oficiais recrutados à pressa para o movimento também não estavam plenamente convencidos. Com os três do quartel de Beja e mais três que o acompanharam de Lisboa, teve Varela Gomes intensas discussões, literalmente até ao último minuto, para evitar que desistissem.

O plano consistia em tomar o quartel e aí instalar Humberto Delgado. O general, entrando clandestinamente em Portugal, assumiria as rédeas da revolta com a legitimidade do apoio popular verificado durante a campanha presidencial. De Beja deveriam partir colunas para Lisboa e para o Algarve, procedendo pelo caminho ao “levantamento das populações, chamadas com a ajuda de megafones, a quem seriam distribuídas armas”, segundo José Hipólito dos Santos. Mais do que os comandantes de unidades comprometidos com Varela Gomes, que na hora da verdade podiam cumprir melhor ou pior os seus compromissos, contava-se sobretudo com o povo que três anos antes tinha estado na rua com Humberto Delgado.

Na madrugada de 1 de janeiro de 1962, os militares entraram pela Porta de Armas, de acordo com o plano, mas logo se depararam com a primeira dificuldade, que era a presença na unidade do major Henrique Calapez Martins, legionário irredutível e segundo comandante do regimento. A iniciativa de Varela Gomes, de empreender ele próprio a captura daquele oficial, gorou-se por motivos bem conhecidos: quando tentou dialogar com Calapez para obter a sua rendição, foi recebido a tiro e sofreu dois ferimentos graves. Apesar de uma parte dos civis ter conseguido entrar no quartel, apoderando-se da Casa da Guarda e dominando a sua guarnição, os graves ferimentos sofridos por Varela Gomes decapitaram a revolta e rapidamente inviabilizaram qualquer nova iniciativa dos insurrectos. O alarme entretanto estava dado e os insurrectos foram na sua quase totalidade capturados numa extensa ofensiva policial. No balanço final, havia dois insurrectos mortos, dois feridos e, do lado governamental, o sub-secretário de Estado do Exército atingido mortalmente por “fogo amigo”.

Nos dias seguintes, mesmo sem se poder vislumbrar qualquer reanimação do movimento insurrecional, a ditadura foi incapaz de esconder o seu nervosismo. Os pasquins fascistas mais notórios, como A Voz, alarmaram-se com a composição predominantemente operária do grupo revolucionário e chegaram a sugerir que os seus membros fossem “passados pelas armas”. Mesmo jornais relativamente conspícuos, como O Século e o Diário de Notícias, reclamavam as medidas mais extremas contra a alegada inspiração cubana da revolta. Enfim, a perturbação que atingiu a pirâmide fascista da base até ao topo acabou por traduzir-se no facto de Salazar, afónico, ter precisado de mandar ler ao seu acólito Mário de Figueiredo a comunicação que tinha para apresentar à Assembleia Nacional.

O ano iniciado com a revolta de Beja foi ainda o da primeira grande crise estudantil. Mas depois calaram-se os últimos ecos da vaga delgadista, e, em 1964, a pequena vanguarda que empreendera a Revolta de Beja ia ser julgada num ambiente desfavorável. O julgamento encontrava-se sob uma observação invulgarmente atenta da imprensa internacional e a ditadura encenava uma face paternalista e conciliatória para mostrar ao mundo que podia permitir-se o luxo de uma relativa brandura. Mas a generalidade dos insurrectos levados a tribunal não se deixou confundir com cantos de sereia e manteve uma atitude digna.

Varela Gomes adoptou um discurso combativo, inspirando-lhes contenção e firmeza. Ao magistrado que, sugerindo-lhe uma declaração de arrependimento, lhe perguntava se voltaria a pegar em armas contra o regime, respondeu ele, apontando os pides que enchiam a assistência, que isso seria, “naquelas circunstâncias”, impossível. No discurso final, afirmou que aquele banco dos réus sempre cheio de gente era o refúgio da honra num país que resistia. Acrescentou depois: “Levei até à última fronteira da legalidade o meu protesto, pouco me tendo surpreendido ver confirmada a inutilidade de uma oposição leal, a peito descoberto. Nunca um governo desta espécie policial e predatória abandonou o poder a não ser expulso pela força”. E concluiu, lapidarmente, com um apelo a “que, quanto antes, outros triunfem onde nós fomos vencidos”.

A maioria dos réus foi condenada em penas relativamente curtas, saindo em liberdade ao fim de pouco tempo. Manuel Serra apanhou a pena mais pesada, de dez anos, e logo a seguir Varela Gomes, uma de seis anos. O seu protagonismo na vida política portuguesa tinha durado dois meses e prolongara-se até ao final do julgamento. Cumpriu a pena e foi libertado em 1968, meses antes de Salazar cair da cadeira e ficar incapacitado.

A chamada “Primavera marcelista” pouco lhe aproveitou, porque a PIDE continuava a vigiar cada um dos seus passos, com plantões ininterruptos das 9 h da manhã à 1 h da madrugada, e a vigiar toda a sua família. Nos seis anos de liberdade condicionada que se seguiram, iria lutar pela vida em diversos empregos e retomar nos núcleos da CDE uma actividade política que lhe estava expressamente proibida.

 

A revolução de Abril e o regime de Novembro

 

No dia 25 de abril, Varela Gomes será um dos muitos milhares a desobedecerem às ordens de confinamento insistentemente emitidas pelo MFA – um dos muitos milhares que desse modo transformaram o golpe militar em revolução. Não deixa de ser uma ironia que a Revolta de Beja confiasse na sublevação do povo para alcançar a vitória, não tendo chegado ao ponto de poder chamá-lo à rua e distribuir-lhe as armas que queria; e que o MFA, pelo contrário, quisesse manter o povo em casa, tendo afinal beneficiado da sua espontânea desobediência para se consolidar contra a clique spinolista, apostada desde o primeiro instante em esvaziar-lhe os poderes e desvirtuar-lhe o programa.

Varela Gomes foi reintegrado no Exército com o posto de coronel e recebeu a incumbência de dirigir a Comissão de Extinção da PIDE e da Legião – ambas decisões do MFA que Spínola, empenhado em proteger a PIDE, não estava disposto a engolir. Em 24 de maio, um dos spinolistas da Junta de Salvação Nacional, general Jaime Silvério Marques, montou-lhe uma cilada, convocou-o para uma reunião e colocou uma força da Polícia Militar à espera para detê-lo, fazendo dele o primeiro preso político de esquerda na era pós-fascista. Os protestos públicos que a detenção imediatamente ocasionou e a réplica fulminante de Diniz de Almeida, que mandou apontar obuses do RAL-1 ao Palácio de Belém, levaram Spínola a recuar.

O improvisado presidente da República tinha perdido essa primeira prova de força, mas Varela Gomes perdeu a chefia da Comissão de Extinção. Foi depois colocado na 5ª Divisão do EMFA, que em pouco tempo transformou num baluarte da esquerda militar. Para além das campanhas de Dinamização Cultural da Codice, que constituiriam só por si um tema inesgotável, a 5ª Divisão acabou por ser um núcleo de importância decisiva sempre que esteve em jogo a sobrevivência da própria revolução. Assim foi no 28 de setembro, quando Otelo e Vasco Gonçalves ficaram reféns dos golpistas, e assim foi sobretudo no 11 de março, quando o Copcon brilhou pela ausência durante toda a jornada e o RAL-1, cercado e bombardeado, apenas pôde contar com o apoio das massas.

A 5ª Divisão, sem ter comando de tropas, saltou nessa emergência sobre a hierarquia existente e usou os microfones da Emissora Nacional para apelar ao contra-golpe, com sucesso aliás assinalável porque o afluxo de centenas de pessoas ao RAL-1 foi decisivo para os páraquedistas se aperceberem do logro em que tinham caído e imporem, à revelia do seu comando, o cessar-fogo imediato e a confraternização com a unidade atacada.

Outra importante iniciativa da 5ª Divisão foi, na noite de 11 para 12 de março, a convocação da famosa assembleia militar que criou as condições para ser nacionalizado todo o sector financeiro e a grande indústria, e para serem legalizadas as ocupações já em curso na zona da reforma agrária. A assembleia visava também retirar posições de poder aos oficiais conotados com o golpe ou cujo comportamento ambíguo durante a jornada os tornava menos confiáveis para emergências futuras. Não foi, nesse aspecto, tão bem sucedida, até porque começava a surgir dentro do próprio MFA um sector “moderado”, hostil à perspectiva do poder popular e disposto a todas as cumplicidades e alianças que pudessem impedir o seu desenvolvimento. A assembleia mais tarde vilipendiada como “selvagem” confirmou também a data das eleições para a Assembleia Constituinte, em 25 de abril de 1975.

Varela Gomes foi enviado em missão a Cuba e não esteve em Portugal na data das eleições. O embaixador norte-americano, Frank Carlucci trocou na altura correspondência com o secretário de Estado Henry Kissinger, manifestando-lhe a preocupação de o homem que era considerado verdadeiro motor da 5ª Divisão poder implantar em Portugal o modelo de CDRs (Comités de Defesa da Revolução) inspirado no exemplo cubano e nas reuniões que teve com Fidel Castro.

Mas a vitória do PS nas eleições constituintes tinha dado novo fôlego aos militares “moderados”, que iam tomando posições em sucessivos golpes de secretaria e, ao mesmo tempo, recuperavam a iniciativa da acção em campo aberto, lançando o “Documento dos Nove”, neutralizando Vasco Gonçalves e, cada vez mais, atraindo Otelo à sua esfera de influência. Varela Gomes foi então afastado da 5ª Divisão, esta foi depois assaltada por ordem de Otelo, e, enfim, os oficiais divisionários foram barrados à porta da famosa assembleia de Tancos, em 5 de setembro. A Carlucci, não passou desapercebida a importância que tivera o silenciamento da 5ª Divisão e apressou-se em comunicar ao seu chefe, Henry Kissinger, esse auspicioso desenvolvimento.

Mas faltava ainda restabelecer a disciplina militarista nos quartéis, para se restabelecer depois a disciplina burguesa no país. O bloco político-militar entre a direita e a social-democracia foi fabricando provocações, uma após outra. A tropa paraquedista era o alvo ideal para cair na armadilha: sucessivamente manipulada pelos seus oficiais em intentonas antidemocráticas, acabara por revoltar-se contra essas manipulações e virar “à esquerda”. A provocação consistiu neste caso em retirar da unidade a grande maioria – 123 – dos seus oficiais e em mandar dissolvê-la. Ao nível mais directamente político, decidia-se entretanto substituir Otelo por Vasco Lourenço à frente da Região Militar de Lisboa.

Perante o cocktail explosivo das duas provocações, os páraquedistas gizaram o plano de ocupar as bases da Força Aérea e sondaram Otelo sobre esse plano. O chefe do Copcon, vislumbrando aí a oportunidade de fazer gorar a sua substituição, alentou-lhes o plano. Os páraquedistas sondaram também Varela Gomes que, pelo contrário, os advertiu contra o salto que iam dar no vazio. O sargento paraquedista António Carmo Vicente foi um dos que ouviram a advertência e retorquiram que a sublevação já estava em marcha e era impossível pará-la. Varela Gomes prometeu-lhes então todo o apoio que pudesse dar.

Apesar das advertências, a operação tecnicamente perfeita começou por ter êxito e desequilibrar a situação a favor da esquerda militar. O Governo e boa parte da maioria parlamentar fugiram para o norte, preparando a guerra civil. O presidente Costa Gomes aplicou-se a negociar uma saída, conseguiu que o PCP desmobilizasse os trabalhadores que barravam o caminho aos comandos de Jaime Neves e em breve começou também a ser obedecido pelo Copcon. No momento mais crítico, Otelo desertou do seu posto e foi entregar-se em Belém. Diniz de Almeida tentou ainda coordenar as forças dispostas a resistirem, mas rapidamente constatou que a deserção de Otelo tornava inútil a tentativa e acabou por entregar-se.

No Copcon, Varela Gomes cumpria entretanto a palavra dada aos páraquedistas e procurava mobilizar as forças que estivessem dispostas a resistir ao estado de sítio. Com a noite de 25 de novembro já avançada, extinto já o foco de resistência da PM e evacuadas as bases pelos paraquedistas, constatou igualmente a derrota. Apontado a dedo pela imprensa nacional e internacional como o “chefe” da tentativa insurrecional, recusou entregar-se, passou à clandestinidade e, na primeira ocasião, partiu para o estrangeiro com outros dois fugitivos, Duran Clemente e Costa Martins.

Começavam então os quatro anos de exílio de Varela Gomes. Depois de uma curta estadia em Cuba, partiu para Angola, onde se ofereceu como voluntário para combater a invasão sul-africana. Mas as disposições voluntariosas suscitavam desconfiança na corte do “soba sentado”, como designava Agostinho Neto: colocaram-no numa prateleira da Academia Militar. A Embaixada norte-americana em Lisboa continuava entretanto a seguir atentamente o percurso de Varela Gomes em Angola, e em breve pôde regozijar-se com notícias trazidas pelo aparatchik do PS Rui Mateus, que, após conversa com Agostinho Neto, o dava como sujeito a apertada vigilância em Luanda.

Em 27 de maio de 1977, a sangrenta repressão contra a revolta de Nito Alves atingiu pessoas próximas de Varela Gomes: Costa Martins preso e torturado, a ex-militante do PCP Sita Vales torturada e morta. Protestou em carta a Agostinho Neto e em visita a Iko Carreira e só não foi também preso ou morto graças à intervenção do Governo da Frelimo, que se declarou disposto a acolhê-lo. Maria Eugénia e João Varela Gomes partiram então para Maputo. Em setembro de 1979, antecipando-se à anunciada lei de amnistia, regressaram a Lisboa.

De volta a Portugal, encontraram um panorama político mudado e um PCP reconciliado com os vencedores do 25 de novembro. Varela Gomes iniciou em 1983 a sua participação no grupo da revista mensal “Versus”, de matriz trotskista, e manteve essa participação durante cinco anos, até a revista deixar de publicar-se, no final de 1988. O grupo Esquerda Revolucionária (ER), que se criou a partir da revista, chegou em 1989 a um acordo com dois outros partidos para constituírem uma frente eleitoral, a Frente da Esquerda Revolucionária (FER). Varela Gomes aceitou candidatar-se ao Parlamento Europeu nas listas da FER.

Nos anos seguintes, manteve colaborações regulares na revista “Política Operária”, de Francisco Martins Rodrigues, e no jornal “Alentejo Popular”, de João Honrado. Em 2012, aquando do cinquentenário da Revolta de Beja, em pleno consulado de Passos Coelho e sob o flagelo da troika, promoveu com Eugénio Oliveira e Raul Zagalo um texto assinado pelos 23 insurrectos sobrevivos, solidarizando-se com a luta actual “contra o retrocesso civilizacional, contra o neoliberalismo que retira todos os recursos da economia real para entregá-los ao capital financeiro, avassalando o mundo e ameaçando o destino das gerações vindouras”.

Três anos antes da sua morte, ocorrida em fevereiro de 2018, havia ainda de escrever: “Tomando o ódio democrático/fascista como distinção honoris causa, aceito com orgulho que o meu próximo desaparecimento do número dos vivos passe tão ignorado quanto o de qualquer expatriado anónimo”. Tinha sobrevivido à revolução e viria a manter até ao final a chama do repúdio por um regime parlamentar ao serviço do capital.

 

Espontaneísmo e blanquismo – o falso dilema

 

Voltemos agora à citação de Brecht que vai em epígrafe deste texto. Ela podia ter sido escrita para João Varela Gomes, que foi o primeiro a pegar em armas quando ainda nada estava ganho, o último a depor as armas quando já tudo estava perdido e o mais obstinado em continuar a luta política durante as quatro décadas de vida que tinha pela frente. Começou muito antes dos outros protagonistas do PREC e prosseguiu até ao fim da vida, muito depois de terem desistido quase todos esses protagonistas.

Para estabelecermos alguns pontos de referência que nos permitam entender o papel de Varela Gomes, recordemos que há vários tipos de revolucionários. Há os que são feitos pela revolução e, por vezes, desfeitos pela sua derrota. E não se trata aqui de um juízo moral sobre cata-ventos e aves de arribação oportunistas, ou de estabelecer uma hierarquia moral entre revolucionários temperados na adversidade e revolucionários improvisados no calor dos acontecimentos. Dos improvisados, nem todos arrefecem logo que reflui a maré e também nesses poderemos reconhecer espírito de sacrifício, abnegação, heroísmo.

Ninguém tem culpa de nascer demasiado cedo ou demasiado tarde. Há pessoas que entram na idade adulta precisamente quando a revolução acumulou todo o seu material combustível e se encontra prestes a explodir. Não puderam portanto ajudar a prepará-la. Há outras que já tinham entrado na idade adulta quando nada se passava e depois são sacudidas pelo terramoto. São revolucionadas pela revolução e, dentro de certos limites, tornam-se pessoas diferentes.

Há mesmo, entre estes filhos da revolução, os que rapidamente se lhe colocam à cabeça: Danton, Robespierre, Saint Just – todos são figuras imponentes que não eram nada e, quase de um dia para o outro, se tornam tudo. Chegam à revolução tarde, sem a terem previsto, mas ficam nesse barco para toda a vida, geralmente uma vida curta. E há os outros, como Fouché, que se envolvem e dedicam com graus de sinceridade diversos, que sobrevivem por sorte ou por instinto de sobrevivência, e que depois viram espectacularmente a casaca, sem vergonha nem escrúpulos.

A contrastar com estes revolucionários feitos pela revolução, há os que consideram um imperativo moral “fazer” a revolução, como dizia o Che Guevara. Duas máximas se confrontam aqui: a marxista (“a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores”) e a guevarista (“o dever de todo o revolucionário é fazer a revolução”).

O bom senso e o realismo parecem dirimir a contradição a favor do marxismo, porque nenhuma pessoa, nem mesmo nenhum partido, “faz” a revolução. E, no entanto, não é possível fazer tábua rasa da exortação dirigida aos revolucionários. Essa fórmula corresponde a uma sólida componente da história, tem raízes fundas na realidade, reflecte a recusa de esperar passivamente até que alguma coisa aconteça. Cunhou-a o “Che”, mas viveram-na, muito antes dele, diversas gerações de revolucionários oitocentistas – os babuvistas, os blanquistas, à sua maneira alguns bakuninistas –, sem lhe darem formulação igualmente clara.

Estes dois tipos de revolucionários trazem marcas genéticas diferentes e, chegada a hora da verdade, contrastam no seu comportamento como contrastavam nas suas origens. Os que foram improvisados no calor da refrega guardam muitas vezes o olfacto para as rápidas mudanças de vento: Danton com a sua audácia; Robespierre com a sua intuição precoce, setecentista, para os soundbytes do discurso político; Saint Just com o seu horror das meias tintas. Não se pautam por nenhum dogma ideológico, e em contrapartida caem frequentemente no empirismo. Não têm veleidades de moldar o curso da História e sabem sobretudo nadar com a corrente.

Os revolucionários de tipo blanquista, pelo contrário, alimentam a ilusão voluntarista de poder fabricar a revolução num momento da sua escolha. Quando a revolução, inesperadamente, lhes bate à porta noutro momento, encaram-na com uma pesada bagagem e com um esquema mental detalhado sobre o que supõem ser o curso dos acontecimentos. Mesmo se o curso muda – e muda sempre, e muda muito –, mantêm-se agarrados ao seu esquema. Nos factos inesperados, creem encontrar alguma confirmação do que já diziam de antes. Não esquecem nada e geralmente não aprendem muito.

Já no século XX, uma outra geração de revolucionários russos – sobretudo os bolcheviques, mas também outros – esperou a revolução como se ela pudesse tardar durante várias décadas e dedicou-se a ela como se pudesse irromper a breve trecho. Por isso, os bolcheviques tinham como virtudes cardinais a paciência e a audácia. Não “fizeram” a revolução, mas fizeram tudo por ela, enquanto não vinha, enquanto se fazia esperar. Fizeram dela, da revolução que tardava, a trave mestra da sua actividade em tempos de acalmia. Antes, tínhamos os revolucionários que eram surpreendidos pelo seu próprio triunfo, como Robespierre, ou os que lutavam pela vitória sem nunca a alcançarem, como Blanqui. A revolução de Outubro foi a primeira a ser encabeçada por revolucionários que tinham vivido para esse momento.

Como entra a nossa revolução nesta galeria de revoluções? Como entra Varela Gomes nesta galeria de revolucionários? A Revolução dos Cravos teve à sua frente militares inicialmente marcados por uma exasperante estreiteza corporativa, depois despertados para a política pela intuição do iminente colapso colonial-fascista. Não precisaram de ver a revolução, já na rua, para aderirem a ela; mas precisaram de cheirá-la, de olfactear a putrefacção da ditadura e a aproximação do colapso. A burguesia foi surpreendida sem partidos, os militares foram surpreendidos sem qualquer cultura política.

O que Varela Gomes tinha de único, e para nós precioso quando o descobrimos, já tarde, era ser um revolucionário experiente, com uma formação sólida e convicções anteriores à euforia do PREC; e ao mesmo tempo um revolucionário que tinha guardado a audácia e a espontaneidade assimiladas na grande vaga delgadista de finais da década de 1950.

A experiência militante defendeu-o contra as tentações espontaneístas, viessem elas pela direita ou pela esquerda. Não se deixou levar pela embriaguez correntíssima naqueles tempos, de ver “em cada esquina um amigo”. Por trás de verborreias pseudo-marxistas adoptadas à pressa, e acolhidas de braços abertos por um nacional-porreirismo ingénuo, via sempre os homens de carne e osso, que já encontrara noutras circunstâncias. Como militar conhecia por dentro e por fora o Exército que o expulsou, os camaradas que o renegaram, a casta de oficiais com o seu historial de crimes de guerra e de conivências com a ditadura. Olhava com saudável cepticismo a euforia espontânea sobre o MFA, “movimento de libertação” – essa euforia que era mãe de quase todos os oportunismos do PREC.

A mesma experiência militante defendia-o também contra alguns impulsos espontâneos vindos da base. Escaldado com iniciativas bem intencionadas, advertiu os páraquedistas contra o passo que iam dar em 25 de Novembro de 1975. Mas a advertência que lhes dirigiu era inspirada por uma identificação profunda com os militares repetidamente enganados e manipulados pela hierarquia. A solidariedade que mantinha com os insurrectos não dependia do maior ou menor acatamento que estes dispensassem às suas advertências. Acabou, assim, por aderir àquela mesma acção que tinha desaconselhado com veemência.

E aqui voltamos a encontrar o “espontaneísta” de 1958-1962, que nunca deixou de existir sob a lucidez do militante amadurecido na prisão e na conspiração – o “espontaneísta” que também encontrámos em momentos anteriores do PREC, principalmente face ao golpe de 11 de Março. Quando as chefias militares permaneciam em silêncio, quando os grandes partidos hesitavam – o PS numa demorada e mais do que ambígua expectativa, o PCP num receio inicial de errar por precipitação -, Varela Gomes recusou perder tempo, recusou envolver-se em discussões intermináveis com hierarquias militares ou com aparelhos partidários.

Depois de ter assentado a poeira, foi acusado de “usurpação de funções”. Muitos anos depois, não se tornara um arrependido nem passara a tapar o sol com a peneira. Aos ecos da acusação, continuava a responder que cometera, efectivamente, uma “usurpação revolucionária”, porque a revolução se teria perdido nesse dia se se deixasse ficar à espera que a mesma hierarquia exercesse as suas competências e atribuições formais. Tinha o sexto sentido da acção directa, não como iniciativa nascida arbitrariamente na cabeça dos revolucionários, mas como algo que, em situações críticas, o simples bom senso exigia e tinha portanto o potencial de se tornar uma acção de massas.

A audácia espontânea perante o perigo mortal representado pelo golpe de 11 de março consolidou a fama de Varela Gomes como um incontrolável, que agia por impulsos individualistas. E é verdade que não debitava sermões encomendados. Algumas das mais importantes decisões que tomou vieram de um impulso individual, ou quando muito após consulta com os seus companheiros mais próximos, na 5ª Divisão.

Mas também é verdade que não havia no PREC nenhuma direcção revolucionária que soubesse fazer esta síntese: refrear a euforia oportunista ou as acções precipitadas; e, ao mesmo tempo, conservar a espontaneidade revolucionária para tomar instantaneamente as decisões inadiáveis. Varela Gomes não fantasiou a existência de um colectivo – MFA ou partido – que, de facto, não existia. Sem ter teorizado sobre o tema, fez o que alguém na sua posição podia ter feito para criar espaço e dar oportunidade ao desenvolvimento da direcção revolucionária em falta.

O que fica do seu “individualismo incontrolável”, da sua “teimosia” e “autoritarismo”, quando vemos que questionou as revoltas de Beja e do 25 de Novembro e depois aderiu a ambas, e em ambas escolheu arriscar a vida ao lado dos companheiros que não conseguira convencer? Fica a sua relutância em disciplinar-se a qualquer aparelho militar ou partidário mas, ao mesmo tempo, uma disciplina e uma lealdade absolutas perante os imperativos da luta. E a lealdade seria certamente muito mais fácil de manter para alguém que, com ligeireza, sobrestimasse as possibilidades de sucesso.

Varela Gomes encabeçou a revolta de Beja nos anos 1960, foi apontado como chefe da revolta dos páraquedistas nos anos 1970, e participou na actividade ultraminoritária da revista “Versus” nos anos 1980. Não procurava o êxito garantido, nem o êxito a qualquer preço, nem se enganava com facilidades imaginárias. A sua larga experiência política dotara-o do “pessimismo da razão” em doses que teriam sido incomportáveis para alguém com menos fibra de lutador. Mas, ao entrar em acção, ultrapassava todos os entusiastas da véspera, agora surpreendidos pelos obstáculos imprevistos. Depois do “pessimismo da razão”, era a hora do “optimismo da vontade”.

E esse não era apenas o preceito de todas as lutas – “on s’engage et puis … on voit” –, mesmo das que começaram mal, e que apesar de tudo é preciso tentar ganhar. Era também uma lição de vida, para os núcleos militantes, os grupos, os colectivos que lhe estavam próximos e para as gerações contemporâneas ou futuras a quem deve chegar, como numa garrafa lançada ao oceano, a mensagem que é também um voto de sucesso: “Que outros triunfem onde nós fomos vencidos”.